Rio de Janeiro, 23 de Novembro de 2024

Será que ela é?

Quem passa pela rua Adolfo Tabacow, no bairro do Itaim, em São Paulo, fica intrigado com a quantidade de mulheres jovens e bonitas que fazem fila na calçada esperando a vez de entrar em um bar.
 
Ali funciona, desde julho do ano passado, o Bardagra, um ambiente charmoso, ponto de encontro de homossexuais.
 
A quantidade de decotes e pernas de fora por metro quadrado surpreende.
 
Aberta de quarta a domingo, a casa recebe cerca de 450 pessoas por noite. Em dias de maior movimento, o número chega a 700.

Eu cheguei lá em uma quinta-feira de muito calor.

Nessa noite, só toca MPB e, apesar de lotado, o ambiente estava calmo. Muitas namoravam abertamente, se beijavam na boca, se abraçavam, ou ficavam de mãos dadas. Outras estavam sozinhas. Algumas simplesmente batiam papo em rodinhas animadas.

A casa tem um pequeno mezanino, onde costumam ficar os casais de moças que querem maior privacidade.

Nas duas vezes em que fui lá, vi a mesma japonesa exótica, de cabelos loiros – uma vez acompanhada de uma mulher e outra, de um homem.

Na noite seguinte, fui ao Farol, um simpático bar com varanda, localizado na Vila Madalena, reduto boêmio dos paulistanos modernos.

A freqüência é bem variada e lá o namoro também corre sol-to, em clima de meia-luz. Minha entrada não chamou a atenção de ninguém.

Apesar de ser heterossexual convicta, fiquei decepcionada por não ser notada.

“Será que não sou atraente para elas?”, pensei.

Me distrai ouvindo música ao vivo – no palco pequeno e improvisado, uma moça cantava enquanto a outra fazia um belo solo de sax. Mais tarde, soube que elas eram namoradas.

Depois de quase duas horas observando o ambiente, a situação melhorou para o meu lado.

Reparei no olhar insistente de uma moça de tailleur que estava do outro lado do salão. Fiquei na minha, sentada no balcão. Alguns mi-nutos depois, ela se aproximou e fez uma pergunta muito perto da minha orelha.

Queria saber se podia escutar música ao meu lado.

Eu disse que sim, ela pediu uma cerveja e começou uma conversa.

Ela me contou que era advogada, eu contei que era jornalista e ela riu, dizendo que eu tinha cara disso, por causa dos óculos. Ela foi gentil e discreta e eu em nenhum momento falei sobre a reportagem.

Depois de ouvirmos uma música juntas, eu disse que já era tarde e fui embora.

O assédio não corre solto como eu imaginava. Achei que bastava entrar alguém desconhecido no lugar para despertar um clima de paquera explícita.

Nada disso.

Tudo acontece como em qualquer bar, alguns paqueram, outros não, com a diferença de que esse roteiro é freqüentado principalmente pelo público feminino.

Várias vezes fiquei em dúvida sobre a orientação sexual das mulheres.

A cada momento me perguntava: será que ela é?

Muitas são bem ambíguas.

Seus códigos sutis passam despercebidos para leigas como eu, mas alguns são identificáveis. As mais assumidas usam relógio na mão direita.

As bem jovens usam tatuagem no braço, camiseta regata e calça de sarja com botões. Nos pés, tênis ou botinas.

Claro que mulheres heteros podem usar tudo isso – porque são artefatos da moda contemporânea. Mas, em um reduto gay, esse figurino típico funciona como uma mensagem.

Como em qualquer lugar de paquera, o olhar é um código poderoso.

Ele é longo, intenso, e não deixa dúvidas sobre a intenção de quem olha. Outro sinal explícito são as unhas curtas.

A cantora Vange Leonel, militante gay e autora do livro “Grrrls: Garotas Iradas” (ed. GLS), me explica que, se as unhas estiverem compridas, podem machucar a parceira na hora da transa, já que o dedo é um dos protagonistas do ato sexual.

Vange foi a primeira mulher a ter uma coluna assinada sobre lésbicas na primeira revista gay de circulação nacional, a “Sui Generis”, publicada nos anos 90.

Hoje a cantora assina a coluna GLS, da “Revista da Folha”. Ela não considera que o assunto seja modismo. “O tema veio para ficar e reflete a pluralidade de tendências de comportamento dentro da sociedade”, opina.

Marginal e moderno

“Você é lady ou sapatão?”

Era assim que começava uma abordagem clássica nos bares de lésbicas mais populares de São Paulo até uma década atrás, conta Vange Leonel.

Segundo a cantora, a maioria das garotas homossexuais procurava se encaixar em um desses dois estereótipos.

Hoje o mundo gay feminino se ampliou – tanto em número de pessoas, quanto em liberdade de estilo – mas o estigma da linguagem continua.

Dentro dos próprios grupos, as mulheres com visual masculinizado são conhecidas como “sapatonas” ou “fanchas” e as muito femininas como “ladies” ou “sandalinhas”.

“As relações entre fanchas e sandalinhas representam o que existe de pior na relação patriarcal heterossexual, em que um manda e o outro se submete”, diz Vange. “Insisto que temos que encontrar nossa própria forma de amar, sem reproduzir padrões que não servem à felicidade de ninguém.”

Até o início da década de 90, os bares para mulheres eram restritos e escondidos, e tinham nomes sugestivos como Ferro’s, Dinossauro’s e Moustache.

Localizavam-se principalmente no centrão paulistano, ponto barra pesada, famoso por reunir prostitutas, travestis e cia. Eram lugares associados à marginalidade.

“Sempre que ia a esses bares, eu me decepcionava”, conta a psicóloga Selma*, 44 anos.

“Eu ia em busca de identificação e não conseguia me achar. Me sentia mal de estar sempre escondida, no meio de gente que não tinha nada a ver comigo”, reclama.

"Sou feminina e adoro mulher"

"Gosto de batom, perfume, vestido e salto alto. Tenho certeza de que quem olha para mim nem imagina minha opção sexual. Eu sempre fui feminina e sempre gostei de mulher, desde que ela seja feminina também. Não namoraria uma sapatona típica. Perco o tesão na hora. Quem disse que lésbica precisa ser machona? Tenho horror desse estereótipo."

Berenice*, 28 anos, bióloga

"Tenho marido homem e amante mulher"

"Sou casada há mais de dez anos. Tenho um marido que adoro e dois filhos pequenos. Há cerca de dois anos, me interessei por uma mulher. Linda, freqüentava a mesma academia que eu. Ficamos amigas, acabamos tendo um caso que dura até hoje. Fiquei surpresa em ter tanto prazer com ela e continuar a ter prazer e amor por meu marido. Nunca imaginei que fosse bissexual. Considero as duas relações bem parecidas. Acho que neurose não tem sexo mas, com mulher, a suscetibilidade é maior. Vira e mexe, eu e ela estamos discutindo a relação. Na TPM é um inferno! Nesse sentido prefiro os homens. São mais práticos e detestam papo cabeça."

Marisa*, 40 anos, publicitária



Crédito:Luiz Affonso

Autor:Carla Leirner

Fonte:Marie Claire