Não é fácil definir um relacionamento abusivo, muito menos identificar se você é o abusador ou o abusado. Claro, algumas situações são óbvias, como por exemplo, quando a esposa apanha do marido, quando há uma violência explicita.
Mas o relacionamento abusivo não se limita a surras e a danos físicos. O dano psicológico é até mais devastador do que o corpo machucado.
Mulheres gostam de apanhar?
A não ser em casos de masoquismo, a resposta é “não”.
Então por que não se defendem? Por que não delatam o companheiro violento?
Por que continuam com ele e ainda inventam desculpas para suas surras?
Simples, porque antes de serem abusadas fisicamente, elas foram abusadas psiquicamente.
Antigamente, somente os homens trabalhavam. Eram eles que sustentavam a família. Eram eles que recebiam salário. Eram eles que detinham o poder dentro de casa. O marido mandava e a mulher obedecia. Simples assim. Em famílias mais machistas, o homem poderia trair a esposa, agredi-la física e verbalmente, inclusive diante de outras pessoas, controlar suas amizades, seus relacionamentos familiares, enfim, o homem era o dono e a mulher, a propriedade. A maioria aceitava o fato como se fosse uma lei. No entanto, mesmo aquelas que se revoltavam contra isso, eram obrigadas a aguentar, ou porque não tinham como se sustentar sozinhas, dependiam do marido para tudo, ou porque a família era contra a separação. O aspecto religioso também tinha muita influência na submissão da mulher. O homem era a cabeça, dizia a igreja, e a esposa tinha obrigação de obedecê-lo. Em algumas partes do mundo, até hoje isso é realidade.
Mas e quanto às mulheres que são independentes, livres da dominância masculina e religiosa? Por que não se rebelam contra o relacionamento abusivo?
Por que continuam dia após dia ao lado do abusador? Por que inventam desculpas que protegem o homem que as espanca?
Alguns esclarecimentos
Para efeito desse artigo, usarei sempre o exemplo de um homem, como abusador, e sua companheira, como abusada.
Mas antes de mais nada, é preciso deixar alguns pontos bem claros. Nem todo abusador usa da violência física. A violência psicológica é mais poderosa e duradoura. Não deixa marcas e o dano pode ser irreversível.
Nem sempre o abusador é o homem. Mulheres também podem ser, e muitas vezes são, abusivas.
Qualquer relacionamento pode ser abusivo. Entre pessoas de sexos opostos ou não.
Qualquer relacionamento pode ser abusivo, não apenas entre casais. Pode haver abuso entre amigos, entre pais e filhos, entre professores e alunos.
Nem sempre o abusador sabe que está abusando e nem sempre o abusado percebe que está sendo dominado.
O abusador não tem cara de vilão e o abuso começa aos poucos, discretamente, disfarçadamente. Normalmente ele é encantador, cativante e você não acredita na sorte que teve de encontrá-lo.
Muitas vezes o abusador se torna abusador porque o abusado lhe confere muito poder. Nem sempre é fácil resistir ao poder.
Mas no que consiste o abuso?
Como saber se você está em um relacionamento abusivo?
Você começa a perder a voz. Sua voz não é mais ouvida, não tem mais valor.
Você começa a perder os amigos. De repente, não há mais nenhum amigo em sua vida.
Você começa a se afastar dos parentes. Frequenta cada vez menos os eventos, as festas, as reuniões sociais.
Você muda a maneira de se vestir, você para de beber, não dá mais aquelas gargalhadas altas, não faz mais nada divertido.
Você frequentemente se sente inadequada.
Você frequentemente se sente indigna de amor.
Você já não tem mais autoestima.
A única pessoa que te ama verdadeiramente é aquela que está ao seu lado.
Nada do que você faz está certo. Nada do que você faz tem valor.
Você não serve para nada.
Você se olha no espelho e não mais se reconhece.
Quando é maltratada, você acha que mereceu, que a culpa foi sua.
Você tem medo de perdê-lo, pois ninguém mais vai te querer.
A armadilha
Júlio é encantador. Não necessariamente bonito, mas charmoso. Desde o começo trata Amanda como se ela fosse uma joia rara e delicada. Ele lhe dá presentes lindos, leva a amada a diversos restaurantes, conquista toda a sua família e até os amigos dela incentivam o namoro.
Ele pede que Amanda vá morar com ele e ela prontamente aceita.
Um dia, vão sair para jantar e ele diz, com todo o cuidado, que a roupa dela está muito decotada. Mulher de respeito não usa roupas daquele jeito. O que vão pensar dela? Se ela quiser sair assim mesmo, tudo bem, ele só está zelando por sua imagem. A mulher gosta de sua roupa, mas talvez ele tenha razão. E não custa nada agradá-lo, só dessa vez.
Mas aos poucos, ela começa a usar, cada vez mais, roupas mais sérias e sóbrias. Afinal, não quer que ninguém pense mal dela e seu companheiro só está tentando protegê-la.
Eles vão a uma festa na casa de alguns amigos e na volta ele fica amuado. Quando ela insiste em saber o que aconteceu, Júlio lhe diz que seus amigos são falsos e não gostam dela de verdade. Com exceção do Rafael que está dando em cima dela e só ela não percebe.
A mulher não acredita, mas quando saem com seus amigos novamente, ela começa a procurar sinais em todos eles. Aos poucos, vai se afastando dos homens e restringe sua amizade só às mulheres.
Mas as mulheres também não prestam. A Luciana tem inveja dela e a Raquel está sempre se insinuando para ele. Assim, Amanda começa a evitar suas amigas. Com o tempo, os convites ficam mais escassos e logo a mulher não tem mais com quem sair, a não ser os amigos de Júlio, de quem ela não gosta muito.
O homem também começa a implicar com a família de Amanda. Nada muito óbvio, nenhum insulto claro. Apenas algumas alusões à fatos que ele percebeu: sua família nunca a amou de verdade. O preferido sempre foi seu irmão. Seu pai, obviamente não gosta dele e faz com que ele se sinta um intruso na família.
Aos poucos, Amanda começa a se afastar também da família. Não tem problema, ela está com Júlio, o único que a ama de verdade.
Então, ele começa a fragilizar a confiança da mulher. Ela está engordando. Em tom jocoso, começa a chamá-la de bolota. Seus cabelos estão muito compridos. Seus cabelos estão muito curtos. Ela não vai envelhecer muito bem. Ela está com aparência de doente. Ainda bem que ele não liga para as aparências. Mas ela podia se esforçar um pouquinho mais.
Júlio sempre caçoa de Amanda, chamando-a de burrinha. Tudo o que ela diz, é bobagem. Ela não sabe de nada. Tão tapadinha, coitada.
Ele vai minando as forças da mulher em todas as áreas. Quando ela fica zangada ou ofendida, no dia seguinte ele lhe dá uma dúzia de rosas.
Em um dia, ele lhe agrada. No dia seguinte, ele a despreza.
Amanda passa a viver em uma montanha russa de emoções. Quando acha que não vai suportar mais suas grosserias, Júlio a surpreende com algum presente ou a leva para jantar em seu restaurante favorito. Ele a eleva um pouquinho, para em seguida deixá-la cair de cabeça.
Ninguém jamais vai te amar como eu te amo. Você é burra mesmo. Nossa, você está cada dia mais feia. Quem vai olhar para você? Seu gosto para roupas é muito cafona. Deixa que eu escolho o que você vai vestir. Você não percebe que todo mundo caçoa de você. Fala menos que é melhor. Não sei o que vi em você. Mas não se preocupe, estarei sempre ao seu lado.
A autoestima de Amanda nunca esteve tão baixa. Uma mulher linda, inteligente, independente. Competente em seu trabalho. Respeitada pelos colegas. Mas quando ela se olha no espelho, tudo o que ela vê é uma mulher gorda, acabada, velha, burra, desprezada, um zero à esquerda. Ela não tem mais valor. Ela não tem mais opinião própria. Era viva, alegre, sorridente. Agora mal sorri. Mas Amanda não conta nada a ninguém. Não quer que julguem seu companheiro. Afinal, ele é muito bom para ela. Se às vezes ele a magoa é porque só quer o seu bem. Ele a ama.
Depois de um tempo nesse relacionamento tóxico, Amanda já se acostumou a ser maltratada. Os insultos ficam cada vez piores. As gentilezas cessam. A sutileza some. Uma vez, a comida está sem sal. Ele joga o prato que se espatifa no chão. Furioso ele manda a esposa limpar aquela sujeira. Amanda se recusa. Está magoada e assustada. Júlio, então lhe dá um tapa na cara. Mais tarde, ele vai procurá-la no quarto e diz que ela o força a fazer essas coisas. Ele não quer, mas ela precisa aprender. Amanda, já com seu psicológico completamente fragilizado, passa a acreditar que realmente tudo é culpa dela.
Um dia a mulher chega ao trabalho com o olho roxo. Os colegas perguntam o que aconteceu e ela responde que caiu e bateu o rosto no móvel da sala.
Outro dia ela liga para o trabalho alegando que está doente. Mas quando ela volta a trabalhar, as marcas em seus braços ainda são visíveis.
A violência física e verbal vai se tornando cada vez pior. Amanda pensa constantemente em se separar, mas e se nunca mais alguém gostar dela? Ela é muito amada, tem certeza disso. Quem mais a amaria? Quem mais cuidaria dela como Júlio cuida? Ela não vale nada. Ela é feia, gorda, burra, incompetente. Quem mais ficaria ao lado dela?
E assim acontece com muitas mulheres, nesse mundo moderno, ainda nos dias de hoje. Não há, necessariamente violência física. Nem todos os relacionamentos abusivos chegam até esse ponto. Mas certamente há violência psicológica. E essa é a chave de tudo.
Como então, se proteger?
Você pensa: ah, isso jamais aconteceria comigo. Será? Imagine uma torneira pingando uma gota de água incessantemente. No começo, você não presta atenção. Depois, começa a ficar levemente irritado. Depois acha que vai enlouquecer. Mas as primeiras gotas, você nem percebe. É muito fácil se deixar influenciar sem perceber. Depois de ser bombardeado com determinada informação, o cérebro passa a acreditar naquilo que está ouvindo constantemente. E quem manda é o nosso cérebro.
Lembre-se, nem sempre percebemos essa lavagem cerebral. Precisamos estar constantemente atentos. Isso é possível? Se estivermos sozinhos, será muito difícil. A armadilha é sutil. Nenhum homem maltrata uma mulher logo que a conhece. Primeiro ele a conquista. Depois ele vai minando sua confiança pouco a pouco. As mulheres abusadas não são burras, não gostam de apanhar, não são carentes, não escolheram ser abusadas.
Então não tem saída? Sim, tem. Nunca se isole. Converse sempre com alguém de sua confiança. Você precisa ter pelo menos alguém na sua vida com quem possa conversar sobre tudo, nem que seja um terapeuta. Alguém que não vai julgar, não vai condenar, e vai mostrar uma perspectiva que você não está enxergando. Uma pessoa que possa devolver a sua voz.
Lucia Moyses é psicóloga, neuropsicóloga e escritora (www.luciamoyses.com.br)
Crédito:Marcela Lima
Autor:Lucia Moyse
Fonte:Redação