Rio de Janeiro, 25 de Abril de 2024

Uma revolução que começou há 500 mil anos

Há quinhentos mil anos, acontecia uma grande mudança na organização social dos seres humanos.

Até então nas mãos de homens e mulheres (com hegemonia destas), o comando passou a ser exclusivamente masculino.

Era o fim da chamada cultura de coleta e início da cultura de caça, em que a força física passou a fazer toda a diferença para a sobrevivência humana.

A partir daí, o homem tornou-se cada vez mais competitivo, enquanto a mulher passou a ser excluída do contexto decisório da sociedade.

Quem conta essa história é Rose Marie Muraro, editora e escritora com mais de uma dezena de livros lançados sobre a condição feminina e as relações de poder entre homem e mulher. Em seu "Textos da Fogueira" (Letraviva, 2000, 192 págs.), Rose Marie, feminista de carteirinha, discorre sobre a condição da mulher e a satanização do sexo em toda a história da civilização, com especial destaque para a época de caça às bruxas.

Centro

Tudo começa com a era da coleta, quando fartos recursos naturais alimentavam a existência do ser humano. Os homens eram marginais e as mulheres, o centro, garantindo a continuidade e o fortalecimento da espécie pela parição. Mais: eram quase seres divinos, pois acreditava-se que elas pariam por terem sido fecundadas pelos deuses.

O poder trocou de mãos há quinhentos mil anos, mas a condição semi-divina da mulher (que lhe conferia ainda autonomia sobre a sua sexualidade) ainda se manteve por milênios: só caiu há vinte mil anos, quando o homem teve capacidade de saber quem era o pai da criança ela não paria dos deuses, como se imaginava. Junto com essa crença, desapareceu a última garantia de um mínimo de espaço e poder femininos na sociedade.

Milênios depois, na cultura agrária, o mundo já era totalmente patriarcal e patricêntrico. Rose Marie escreve que mesmo as culturas agrárias mais antigas, governadas por um par andrógino, acabaram sendo sucedidas por outras mais avançadas, guiadas por deuses mais eficientes e funcionais para os tempos modernos, como Javé, deus dos exércitos.

"É um deus totalmente macho, que governa de cima para baixo, transcendente, onicontrolador, onipresente, todo-poderoso." Já sabendo-se como controlar a sexualidade feminina, afirma a autora, começam a aparecer os textos sagrados machistas. O capítulo 2 do "Gênesis", que narra Deus a tirar o homem da lama e a mulher da costela de Adão, seria o texto fundador do patriarcado. "Por um mecanismo de defesa o deslocamento -, pode-se ver que não é da costela, mas do ventre de Adão que Deus tirou a mulher. (...) Quer dizer, o homem pare a primeira mulher e o parto primordial é do homem. Por isso, a mulher pode parir à vontade!" E o parto, que era sagrado, misterioso, foi simplesmente desqualificado.

Bruxas

Utilizando o mesmo viés machista e racional (legitimado sempre pelo sagrado, lembra a escritora), a Idade Média assistiu à caça de milhares de mulheres tidas como bruxas. Rose Marie apresenta esse contexto com uma abordagem nada mística.

Nesse período, explica, com o desejo de expansionismo da sociedade européia, depois do fim do império romano, os europeus saíram à busca de mais territórios para aumentar seu poder (utilizando um forte pretexto religioso). As Cruzadas duraram quatro séculos e geraram uma escassez de homens no Antigo Continente.

As mulheres passaram então a assumir o comando dos feudos, principalmente no que diz respeito ao poder cultural. "Eram as monjas que educavam as gerações de homens e mulheres na alta Idade Média. Em cinco séculos, só houve um único poeta na Europa inteira, a monja Rosvita de Gandersheim, que está sendo resgatada agora. E outra foi Hildegard de Bingen, do século XII, cuja música esteve há dois anos nos primeiros lugares nas paradas de sucesso na Europa." A caça às bruxas começou no século 14 e, no seguinte, quando as cruzadas retornaram, já estava no ápice. Foram os grandes donos de terras, com suas propriedades cercadas por pequenos feudos (desejados por eles) nas mãos de mulheres velhas e viúvas, que denunciavam as supostas bruxas.

E a Igreja, que podia mexer nas fronteiras dos países como se manipulasse peças num tabuleiro de xadrez, criou a Santa Inquisição. A intenção era reprimir o pensamento dissidente. Mas não o abstrato, metafísico, destaca a autora. "Os poucos heréticos que morreram na fogueira, como Giordano Bruno, foram uma exceção. (...) Ao contrário, 85% das pessoas que foram queimadas nas fogueiras foram mulheres." Numa cidade como Trier, na Baviera, das 800 habitantes, 798 arderam nas chamas em um único dia.

Orgasmo de volta

O poder feminino na sociedade (apenas uma pequena parte dele) começou a ser recuperado somente no século 20. A sociedade de consumo, criando mais máquinas do que machos, abriu frestas para a emergência do feminismo.

Nos anos 60, a mulher entrou maciçamente no mercado profissional. "Ela readquiriu algum poder quando conseguiu seu primeiro emprego. Teve seu primeiro dinheiro e disse "quero meu orgasmo de volta"", interpreta Rose Marie, uma das vozes mais retumbantes da época. "Participei de tudo isso", lembra.

Conclusão: no século 20, ressurge a mulher orgástica e que produz a sua própria sobrevivência. Caem, assim, os dois pilares que sustentam a dominação da mulher nesses milhares de anos: a virgindade antes do casamento e a dependência econômica do homem, conta a escritora. "Se o inquisidor, hoje, ou a partir dos anos 70, retornasse da tumba, acho que pariria três ursos, e teria de colocar na fogueira metade da humanidade!"

Orgasmo, nascimento e cura

Durante a Santa Inquisição, um documento, o "Malleus Maleficarum", escrito por dois inquisidores, norteou todo o trabalho dos caçadores de bruxas.

Em resumo, suas primeiras linhas versam que o homem tem três instâncias: a primeira é o espírito governado por Deus; a segunda é a vontade, governada por um anjo; e a terceira é o corpo, governado por uma estrela.

Satanás, que é um espírito imundo, só pode chegar no homem pelo corpo, e principalmente pelos órgãos sexuais, pois estes são o local da mulher. E a mulher é cúmplice de Satanás, porque cometeu o pecado original.

Quanto mais prazer tinha a mulher, mais mereceria a fogueira principalmente aquelas ""que têm o imundo orgasmo"", porque "uma mulher só pode ter orgasmo (que é uma coisa proibida por Deus) se ela copulou com Satanás"".

Mulheres que se atrevessem a expor seus conhecimentos sobre saúde, tanto as que curavam doentes quanto as parteiras, deveriam ter o mesmo destino.

No final da primeira parte do livro, como uma boa desculpa para exterminar mulheres pobres, lê-se que ""Satanás gosta de comprar bruxas pobres, por isso não existem bruxas ricas, porque o custo das bruxas mais pobres é mais barato e assim ele humilha melhor o seu Senhor"".

 

 

Crédito:Luiz Affonso

Autor:Mary Persia

Fonte:Cruzeiro do Sul