Rio de Janeiro, 26 de Abril de 2024

Auto-estima - Você tem fome de quê?

Depois de um dia difícil, um pedaço de bolo de chocolate pode funcionar como uma dose de uísque —é um jeito de relaxar. Mas o doce vira um problema quando a situação se repete e a pessoa devora o bolo inteiro, sem controle.

“Cerca de 30% dos obesos que procuram tratamento especializado apresentam esse tipo de transtorno alimentar, conhecido como binge-eating, ou episódio bulímico”, explica o psiquiatra Adriano Segal, de São Paulo, diretor do departamento de psiquiatria e transtornos alimentares da Abeso —Associação Brasileira para o Estudo da Obesidade.

Binge, em inglês, quer dizer farra, bebedeira —assim, o binge-eating poderia ser entendido como uma “farra alimentar”. Essa orgia também é chamada pelos médicos de episódio bulímico, mas, na verdade, o transtorno é diferente da bulimia.

Nesse tipo de distúrbio a pessoa também perde o domínio e come exageradamente, mas, preocupada com o peso, faz uso inadequado de laxantes, diuréticos, vômitos auto-induzidos e jejuns prolongados. No transtorno compulsivo, a sensação de remorso não leva a pessoa a tentar reverter a comilança com métodos agressivos —por isso, o comedor compulsivo quase sempre engorda muito.

Segundo os especialistas, além dos altos níveis de colesterol, o problema esconde uma baixíssima auto-estima. “Em uma crise, a pessoa pode consumir até 2 mil calorias em menos de duas horas”, diz a psicanalista Eliana Raposo T. Mendes, diretora clínica da Reluzir —Associação Brasileira de Apoio à Prevenção e Tratamento de Transtornos Alimentares, de São Paulo.

Lá, ela atende pacientes que já passaram por tratamentos de todos os tipos. “Hoje, os médicos mais sensatos estão encaminhando esses casos para a terapia, conscientes de que não basta receitar anfetaminas”, diz Eliana. Muitas vezes é necessário associar antidepressivos, já que os ponteiros da balança só descem de verdade quando, além das calorias, a pessoa consegue reduzir a ansiedade, principal causa desse apetite insaciável e destrutivo.

GULA VERSUS COMPULSÃO

Gula é aquela bola de sorvete a mais, uma tentação que todos podem se permitir, de vez em quando. Já a compulsão é puro descontrole.

“A pessoa não mastiga direito, nem sente o gosto do que está comendo. O binge não é prazeroso”, explica a psicanalista. Movido por questões emocionais e não por fome, o compulsivo está tentando engolir outros problemas. Em geral, não se satisfaz e tem a impressão de ser um saco sem fundo; come para aliviar a angústia e, na maioria das vezes, prefere os doces (veja box abaixo). “Compulsão é quando encobrimos nossa ansiedade, frustração, medo, euforia ou tensão com uma camada de chantilly”, diz Marcelo Kessler, assistente social especilizado no tratamento da obesidade e um dos autores do livro “Emagreça Mudando o Corpo e a Cabeça” (Editora Record, 158 págs.).

 

FEBRE DE CHOCOLATE

O leite condensado é um dos principais alvos de ataque na hora do binge, mas o chocolate em forma de bolos, bombons ou barras é imbatível. "Chocolate alivia a depressão porque estimula a produção de serotonina, substância do cérebro ligada à sensação de prazer", explica Eliana Raposo T. Mendes, psicanalista especializada em distúrbios alimentares, de São Paulo. Quando cede a essa compulsão a pessoa exagera na dose e raramente mistura alimentos diferentes. Na prática, a maioria só come doces.

Esse transtorno pode ser a ponta de um grande iceberg, a depressão, envolvendo uma série de aspectos emocionais e fisiológicos. Isso explica por que algumas pessoas são vítimas de binge em determinadas situações de vida e prova que não basta mudar o cardápio, tem de tratar da ansiedade. “É preciso aprender a lidar com ela: na terapia, a pessoa vai identificar os conflitos que detonam esse comportamento compulsivo e pode conquistar autonomia em relação à sua própria ansiedade, sem ficar à mercê da compulsão”, explica Eliana.

Segundo o psiquiatra Adriano Segal, também há que se levar em conta os motivos fisiológicos —os regimes repetidos e os muito restritivos também podem provocar o transtorno. “Dietas milagrosas e desequilibradas do ponto de vista nutricional somadas a hábitos errados, como jejuns de mais de quatro horas de duração, favorecem o aparecimento do binge”, diz o médico, defensor da reeducação alimentar como o primeiro passo do tratamento.

Ao sabor das emoções

Além da ansiedade e dos maus hábitos adquiridos, quem busca compensação na comida pode estar obedecendo a razões biológicas.

As pesquisas mais recentes têm procurado pistas disso no que os especialistas chamam de plasticidade neural. Tradução: o sistema nervoso central é um dos que se formam em primeiro lugar dentro do útero materno. Nessa etapa, estão sendo produzidos 30 bilhões de neurônios que, porém, ainda não estão interligados através dos chamados circuitos neurais. “Até a adolescência, esses circuitos vão se fundindo.

Assim, se essa pessoa, na primeira infância, recebia uma mamadeira cada vez que sentia um desconforto ou uma dor, é muito provável que, anos depois, a associação continue fazendo sentido, isto é, toda vez que se sentir infeliz vai buscar pelo equivalente àquela mamadeira”, explica o nutrólogo Durval Ribas Filho, presidente da Abran —Associação Brasileira de Nutrologia, em Catanduva, interior de São Paulo.

Assim, as diferentes associações que acontecem explicariam por que tem gente que fica nervosa e não consegue nem pensar em comer, enquanto outras, na mesma situação, não sossegam até devorar o último bombom. Para Ribas Filho, as causas emocionais da obesidade são evidentes: prova é que 91% dos pacientes que podem se tornar anoréxicos também apresentam tendência à depressão. “E cerca de 75% dos que têm predisposição à bulimia também manifestam outros transtornos obsessivos compulsivos, como tiques nervosos”, explica o nutrólogo.

 

"Eu não conseguia me controlar"

"Tenho 20 anos e nunca fui magra. Excesso de peso sempre foi um problema para mim, tenho tendência para engordar. Pior é que adoro doces e comia o tempo todo, fora de hora. Mesmo assim, nunca engordei como aconteceu nesses últimos meses: tenho 1,64 centímetros e cheguei aos 97 quilos, engordei 25 depois de uma viagem de intercâmbio para a Inglaterra, que fiz no ano passado. Passei seis meses lá e voltei um pouco contrariada: gostaria de ter ficado mais tempo. Pior foi que, ao voltar, as universidades federais estavam em greve e enfrentei o semestre praticamente sem atividade. Tudo isso, somado ao rompimento do namoro que tinha começado durante o intercâmbio, me fez entrar em depressão. Não tinha mais vontade de sair, sentia muito sono e fome. Eu comia muito. Tinha consciência de que estava exagerando e engordando, mas simplesmente não conseguia reagir. O problema ficou óbvio quando percebi que estava indo além dos limites e não conseguia me controlar. Muitas vezes, eu não sentia fome, mas continuava comendo, nunca estava satisfeita. Então, minha mãe me levou a uma endocrinologista, que pediu uma série de exames. Não havia nenhuma alteração importante -só excesso de insulina provocado, é claro, pelo excesso de gordura. A médica propôs um tratamento conjunto com um psicólogo, um nutricionista e um personal trainer. O psicólogo me receitou um antidepressivo para controlar a compulsão, mas no início eu não quis tomar. Sempre me tratei com homeopatia e não gosto de remédios alopáticos. Só que perdi apenas um quilo e meio em um mês e fiquei ainda mais ansiosa. Daí decidi ceder e tomar a medicação -felizmente emagreci oito quilos desde então, em menos de dois meses. Faço exercícios todos os dias e estou seguindo a dieta à risca. Continuo ansiosa, mesmo com os remédios, mas a terapia tem me ajudado a lidar com essa ansiedade. Em poucas sessões a minha ficha caiu e ficou óbvio que, antes, eu "resolvia" a minha ansiedade comendo. Neste momento, estou trabalhando essa questão da comida na minha vida, percebendo que tem muito mais a ver com o lado psicológico do que com o físico. Preciso descobrir o que estou tentando substituir com a comida e isso não é fácil. Acho que minha auto-estima só vai melhorar se conseguir emagrecer pelo menos mais 12 quilos, mas sei que estou no caminho certo."

R.J., 20 anos, estudante de comunicação, Brasília, DF

 

COMO RECONHECER

A compulsão alimentar foi reconhecida como um transtorno específico e diferente da bulimia e da anorexia em 1994. Segundo a Associação Psiquiátrica Americana, quem se encaixa em três ou mais das seguintes situações deve procurar ajuda especializada. Isso acontece com quem come:

  • muito mais rapidamente do que o habitual
  • até se sentir desconfortavelmente saciada
  • grandes quantidades de comida sem justificativa, isto é, sem estar realmente com fome
  • sozinha, por sentir vergonha do volume de comida
  • e sente-se mal a respeito de si mesma, fica logo deprimida e, quase sempre, muito culpada
    O diagnóstico fica confirmado quando esses ataques de comilança acontecem pelo menos dois dias por semana e se prolongam por um mínimo de seis meses.

    COMO SE DEFENDER

    Dizem os especialistas que a fome é fisiológica e o apetite, emocional. Por isso, o apoio de um endocrinologista e de um psicólogo é importante, mas a atitude pessoal pode fazer a diferença entre o sucesso e o fracasso de qualquer tratamento. Veja aqui algumas estratégias para driblar a compulsão e reaprender a comer:

  • Não fique com fome, não faça jejum e tenha sempre à mão uma guloseima permitida -capriche na produção de sobremesas diet, como mousses e cremes (de kiwi, de maracujá, de papaia), gelatinas com frutas e tortas leves (de maçã, de morango, de ricota), valorizando as receitas que liberam os doces sem culpa (*). Faça um supermercado magro e mantenha a geladeira farta com iogurtes dietéticos, verduras, legumes, frutas frescas, geléias dietéticas, salsichas de peru ou frango, peito de peru ou chester, atum conservado em água
  • Como um fumante que está abandonando o cigarro, tente se controlar para não sucumbir à tentação. Espere cinco minutos antes de comer o primeiro doce. Se a sensação de urgência persistir, coma uma fruta, masque chicletes, beba água. Como recurso final, procure distração: telefone para um amigo, entre no banho, pegue um livro
  • Crie um ritual com a comida: evite comer em pé, mastigue sem pressa, concentre-se no que está comendo e, se possível, não fuja dos horários oficiais das refeições
  • Mantenha um diário, escrevendo habitualmente tudo o que comeu e o que aconteceu antes de cada lanche ou refeição. Desse jeito, vai ser fácil identificar os seus padrões alimentares, percebendo o que detona os seus ataques de fome. A partir disso, será possível tentar mudar esse padrão

     

  • Pratique esportes, mexa-se, e não só para ficar em forma: exercícios também ajudam a aliviar a tensão e a ansiedade, as mesmas emoções que podem conduzir à cozinha

A tese da plasticidade neural ainda é muito polêmica entre os médicos. Mas ninguém discorda que as vítimas desse transtorno têm muitos pontos em comum. O perfil típico revela pessoas que vivem insatisfeitas e podem sofrer de mau humor crônico (um distúrbio conhecido como distimia).

Além disso, esses pacientes freqüentemente têm problemas de auto-estima, não sabem lidar com frustrações e se sentem incompetentes nas questões afetivas.

Na prática, são pessoas que têm dificuldade para estabelecer limites e para obedecer regras, de um modo geral. Traços de um comportamento obsessivo costumam aparecer com relação a jogos, compras e até sexo, além da comida. São diferentes expressões da mesma ansiedade, que compromete, mais do que o peso, a qualidade de vida.

 

"Se a fome vem, eu invento um assunto"

"Só não estou ansiosa quando durmo. Sempre fui uma gordinha do tipo sanfona: perdia dois a três quilos, ganhava novamente, mas sem sair dos limites normais. A situação fugiu do meu controle quando meu marido ficou doente. Meu filho tinha uns 6 meses e eu, 32 anos. A esclerose rara que o levou à morte durou quatro anos; nesse período engordei uns 25 quilos, e bem depressa. Cheguei logo a um peso de três dígitos e estacionei nesse patamar superalto. Fiz todas as dietas que existem, tomei moderadores de apetite e segui nesse sobe-e-desce de peso até os 40 anos. Depois dessa idade, porém, não conseguia mais emagrecer, só engordava. Na hora das refeições, eu comia pouco. Mas ia ao supermercado, comprava uma barra de chocolate e comia inteirinha, às escondidas. No mesmo dia comprava outra, para substituir a primeira, sem que ninguém notasse – era como se eu estivesse me escondendo de mim mesma, é assim que funciona... Quando não estava trabalhando era um tal de abrir geladeira e armário sem parar. Inventava de fazer brigadeiro e comia de colherada, um absurdo! Tinha consciência da minha ansiedade, mas não avaliava o quanto eu comia quando ficava atacada. Eu era capaz de devorar um panetone inteiro: quando terminava, vinha aquele remorso. É horrível, a gente parece bicho.

Aos 49 anos eu pesava 104,6 quilos, o colesterol estava no limite máximo, minha pressão arterial atingia picos e percebi que precisava cuidar da saúde. Mesmo sem botar muita fé segui o conselho de uma amiga e fui ao Vigilantes do Peso de minha cidade: eu achava que, se perdesse alguns quilos, as pessoas iriam se preocupar menos comigo. No fundo, eu me sentia uma derrotada – não botava a menor fé de que algo pudesse funcionar... Só que emagreci dois quilos logo na primeira semana e pensei: "opa, isso aqui pode dar certo". Comecei a fazer hidroginástica três vezes por semana e fui mudando minha vida. Perdi 36 quilos em um ano e dois meses. Atingi minha meta: chegar aos 67 quilos. Minha ansiedade ainda está aqui, mas aprendi a não canalizá-la para a comida. À noite, que para mim é o momento mais crítico, eu me ocupo: vou ver se as plantas estão com piolhos, arrumo gavetas, arranjo um assunto. Sei que se baixar a guarda, volto a comer. É uma luta constante. Como em toda situação de dependência, a gente tem de exercer o autodomínio o tempo todo. E tem alguns segredos: hoje sei que posso comer um balde de salada, mas, se não tiver salada em casa, vou comer o que estiver na minha frente – então sempre tenho salada na geladeira, sacio a fome com uma sopa de legumes deliciosa e aí, se ainda estiver com alguma vontade, vou comer outra coisa, mas já vou estar mais tranqüila. Também aprendi a fazer trocas: como o meu chocolate, mas preparo um almoço mais leve nesses dias. Estou com 51 anos e já fiz plástica nos seios. Talvez logo faça na barriga também. Recuperei minha auto-estima."

Edna Guedes, 51 anos, empresária, Adamantina, SP

  (*) Para ter acesso a menus diet, receitas exclusivas e dicas sobre programas de reeducação alimentar, consulte os sites www.vigilantesdopeso.com.br/, www.abeso.com.br/, www.emagrecendo.com.br/, www.basilico.com.br/ e www.luciliadiniz.com.br.

Crédito:Anna Beth

Autor:Veronica Barros

Fonte:Universo da Mulher