Antonio Carlos Aguiar*
Existem consequências legais sobre as condutas praticadas fora do ambiente e horário de trabalho?
A resposta, a princípio, poderia ser um sonoro não.
Efetivamente, não se misturariam as situações cotidianas vivenciadas pelo trabalhador.
A rigor, deveriam correr em paralelo, dada a separação que permeia a vida pessoal da vida profissional, onde o espaço-tempo profissional se apresenta como de “heterodisponibilidade”, ou seja, destinado à autoridade patronal, em razão dos poderes que esta detém de direcionar e disciplinar o empregado, derivados da subordinação jurídica da relação de trabalho.
Já o espaço-tempo extraprofissional se apresentaria como “autodisponibilidade”: para exercício de vontades e afazeres particulares e pessoais, garantidos pelos direitos à privacidade e intimidade próprios de cada cidadão.
Portanto, a separar essas duas vias de conduta social existiria uma cerca (intransponível) que impediria a irradiação de efeitos jurídicos da vida pessoal para a profissional.
Essa resposta, por mais sedutora que possa à primeira vista se apresentar, além de incompleta, não se amolda às exigências sociais e jurídicas da modernidade.
A sociedade se mostra mais complexa e exigente. As instituições e relacionamentos que a compõem também.
O físico Edward Lorenz, ao conceituar complexidade, explica que o todo é maior que a soma das partes, em que a interação entre os fatores envolve cada um dos entes em convívio.
Ou, como assinala o professor lusitano João Leal Amado, “o dogma da separação radical entre vida profissional e vida pessoal não pode ser aceito, pois o homem não é um conglobamento de ilhas (a ‘ilha pessoal’, a ‘ilha profissional’, a ‘ilha conjugal’ etc.), não existem muros intransponíveis nesta matéria, pelo que o supramencionado corte absoluto entre vida pessoal e vida profissional é simplista, não resistindo ao confronto com a realidade”.
Vale lembrar que a visão de mundo mudou.
Conceitos antes pétreos, como intimidade e privacidade, hoje são mais do que questionáveis e frágeis.
Nesse sentido, aliás, o doutrinador Fabio Ulhoa é peremptório. Para ele, simplesmente “a privacidade acabou”.
E diz mais:
“Câmaras de vídeo estão espalhadas por estacionamentos, lojas, bancos, edifícios, ruas, por todos os lugares. Sofisticados apetrechos eletrônicos gravam conversas à distância, dispensando a implantação de microfones no ambiente monitorado. Telefonemas e mensagens transmitidas pela internet são interceptados sem dificuldade. Já se organizam gigantescos bancos de dados reunindo simplesmente todas as informações existentes sobre todos nós. Nem mesmo nossos pensamentos e desejos íntimos parecem estar a salvo. Está em fase de finalização para lançamento no mercado a Epoc, uma máquina que lê pensamentos. Ainda é um tanto rude e sua eficácia depende, às vezes, de movimentos “interpretativos” dos braços. Será inicialmente usada para entretenimento em jogos eletrônicos, mas, logo mais, virão o aperfeiçoamento e outros usos; nem meditando teremos sossego”. (Folha de S.Paulo, 21.08.2008).
Como dizer ou imaginar, então, que inexistem influências ou efeitos (práticos e jurídicos) entre as vidas de cada ser humano?
Ou mesmo como pensar em separá-las?
Luiz Fernando Veríssimo, inclusive, em inspirada crônica (Gravando, Estado de São Paulo, 13 de dezembro de 2009), fala da possibilidade de se contar toda uma vida apenas com as imagens que são captadas ao longo de uma existência.
Toda uma vida registrada em tape.
Desde o parto, passando pelo primeiro aniversário, festas de escola, acidentes de trânsito e até imagens recebendo maços de dinheiro...
“O fato é que hoje vivemos sob a fiscalização de câmeras nos lugares mais inesperados, gravando o que fazemos, e até quem não tem culpa se sente constrangido. Você eu não sei, mas eu não faço mais caretas para o espelho em elevador vazio”. O mundo hoje está muito pequeno.
Daí porque mais do que atuais se encontram os ensinamentos de Max Weber sobre a ética da responsabilidade e a ética das convicções.
Não há separação entre as duas éticas, mas, apenas distinção: a das convicções ajuíza as ações antes de sua vigência; a da responsabilidade julga as conseqüências do ato praticado.
No cotidiano do empregado elas não podem ser separadas. Há evidente entrelaçamento entre o teor (e prática) de convicções e atos praticados em cada espaço-tempo com as responsabilidades advindas deles.
Os conceitos jurídicos, como função social ou responsabilidade social da empresa, trazem estreito ligamento entre pessoas e entidades, mas também porque o empregado não é um simples autômato, mas um cidadão com direitos e obrigações, entre elas a de espelho de imagem positiva da empresa para quem presta serviços.
Essa intersecção de fatos, atos e responsabilidades éticas faz parte da chamada “teoria dos efeitos reflexos”, onde a liberdade pessoal do trabalhador, a reserva da sua vida privada e o seu direito a não ser controlado “fora dos muros laborais” têm como contrapartida limitações a “excessos” que tragam reflexos negativos.
Denota-se, diante dessa nova realidade de convívio e vigilância a que todos nós estamos expostos, que não se pode mais falar ou aceitar como válido e incólume o princípio da irrelevância disciplinar de comportamento extraprofissional do trabalhador.
Ao contrário, temos de ter em mente conceitos mais modernos como equilíbrio, razoabilidade, justa medida e proporcionalidade na análise e consideração de condutas da vida pessoal, perante seus desdobramentos na vida profissional, motivo por que políticas e regulamentos internos podem e devem servir como dique de contenção e orientação para ajustar o cotidiano laboral.
* Antonio Carlos Aguiar é sócio do escritório Peixoto e Cury Advogado e professor do Centro Universitário Fundação Santo André – antoniocarlos.aguiar@peixotoecury.com.br
Crédito:Luiz Affonso
Autor:Antonio Carlos Aguiar
Fonte:Universo da Mulher