Rio de Janeiro, 16 de Abril de 2024

O Songamonga

Ela olhou a foto jogada em cima da mesa e escolheu: “quem é esse, dê-me seu telefone”.
 
Mas ele é alemão e não mora aqui, esclareceram. Num domingo chuvoso e propício, acertaram os primeiros detalhes.
 
Traçou uma linha reta entre Berlim e Rio de Janeiro e o dedo parou em Paris, para a avant-première da lua-de-mel. Seus sogros logo aprovaram a deportação de seu filhinho de 58 anos, o barco encalhara de há muito, as netas votaram a favor do degredo do pai. Tudo sem a sortuda da noiva tomar conhecimento.
 
Eu disse noiva?
 
Uma pinóia, correria a versão na Cidade Maravilhosa de uma experiência conjugal com prazo de carência, morar juntos apenas uma necessidade de baixar custos. Precisariam se conhecer melhor, se o sexo seria feito na poltrona herdada da bisavó ou por sobre o tapete de rolhas produzido em série pelo alternativo Alemão.
 
Todavia, ela já havia vencido o inferno das paixões, pensava Jung, “quanto mais predomina a razão crítica, mais a vida se empobrece”, fazendo uso da criatividade do brasileiro típica em deturpar princípios a serviço do gozo do prazer de sua ética.
 
Fez correr as proclamas, naturalização em curso, casamento em cartório, adeus à vida hippie, e os sogros resolveram dar uma força aderindo também a Jung, “quanto menos os pais aceitem seus próprios problemas, tanto mais os filhos sofrerão pela vida não vivida de seus pais”.
 
Uma interpretação conveniente de quem pretendia tirar proveito e encobrir o avoado do Alemão, perdido em sua identidade de não conseguir realizar nunca suas tarefas comezinhas quanto mais enxergar fim nos seus propósitos. Um ser indefeso e confuso necessitante de tutor, senão à deriva permaneceria, cujo grau de comprometimento com a realidade do relógio carece de teleguiar-se. O dia seguinte é o seu maior desafio, posto que hoje é melhor pitar um cigarro, metido em um calção bem largo, de pés descalços em contato com nossos antepassados silvícolas, a curtir uma cachaça e discutir a importância do eneagrama. 
 
Sistema que permite mapear com segurança os tipos psicológicos básicos do ser humano na boa intenção de nos trazer um sopro de felicidade ao desvincularmos de estratégias que nos limitam no relacionamento com o mundo e com as pessoas, gerando atitudes mecânicas e repetitivas. 
 
Mas o eneagrama não solucionou o dote acordado por conta de sua remoção para a capitania do apartamento de sua agora esposa. Esfumaçou-se no trajeto através de saqueadores de destinos, primos dos duendes, que vivem da prática do estelionato de sonhos e alicerçam álibis promissores como o do Alemão a enganar a noivinha de Copacabana, a princesinha dos mares.
 
Pensam que ela se abalou? Na-na-ni-na-não! Tinha mais peito que o natural, embora, por vezes, fosse acometida de surtos de escurecimento da pele à la Tim Maia, a sinalizar que o tempo irá fechar. Ao se intitular como Sara, imitava abusivamente o modo de falar judaico, exaltando sua capacidade de negociar, de comprar o que for necessário para se inserir no que a normalidade tem de mais medíocre.    
 
O Alemão achou um sapato velho para acomodar seus pés cansados de anos de beira de estrada, se tornou o abrigo seguro em que uma mulher pudesse depositar todos os seus sonhos de encontrar um marido, construir um lar e, se desse sorte, ter um herdeiro bonito e louro.
 
Disfarça o zero à esquerda na preguiça, se faz de zumbi como um gato que não mia e percorre os recantos da casa sem que ninguém se aperceba, cara, o alemão é um songamonga!
 
Por conveniência. Quando a situação é favorável, se mostra sonso, bonzinho, cordato, enquanto por trás dá vazão ao vampiro que ataca de dia. Acautele-te com seu perfil erecto, sempre pronto para o bote da cobra, e engolir o boi. Leva vantagem sobre o escorpiano, que pica mortalmente desconhecendo o terreno que pisa, sendo vítima de seu próprio veneno.
 
O que alimenta as especulações sobre traição no songamonga, mas ele é apenas um pinto molhado na chuva, de inspirar pena, não vai dar boa canja! Como todo bom alemão filosofa, a cultura perpassa pelos inúmeros arremates e dobras de sua personalidade, saca de seu inconsciente coletivo Beethoven, Marx, Nietzsche e Hitler, para ensaiar um protótipo de homem que não traia, não judie e não destrua amores castos e amigos irmãos. Vã filosofia!
 
Nem que ela tivesse que tocar a boiada sozinha, aos 45 anos, ainda sim valeria o sacrifício. Amor e paixão num mesmo homem poriam mais fé nesse coração que sempre se nutriu de ardis com sua voz em falsete. Denotada pelo queixo, que, nesse instante, se alonga como o nariz do Pinóquio, tornando o rosto uma caricatura.
 
Agora ela podia descansar em paz, e chegar em casa com o pão quente da padaria e queijo fresco, teria um companheiro, à sua altura e à sua espera, para abrir a porta!
 
 
 
 

Antonio Carlos Gaio

           

       

Crédito:Antonio Carlos Gaio

Autor:Antonio Carlos Gaio

Fonte:Esses inesqueciveis homens