Rio de Janeiro, 17 de Maio de 2024

Mulheres levam a paz às favelas

Por Fabiana Frayssinet, da IPS

Rio de Janeiro, 30/06/2009 – É um dia de tiroteio no Morro da Providência e somente se pode circular sem muito perigo na base do morro, um espaço cotidiano que na cidade do Rio de Janeiro as mulheres das favelas tentam pacificar. Alessandra da Cunha é uma das 11 mil “mulheres da paz” recrutadas pelo governo para o Programa Nacional de Segurança com Cidadania, do Ministério da Justiça.

O plano busca “desenvolver através de mulheres líderes em suas comunidades os valores da cultura da paz, ou seja, a solução de problemas comunitários sem uso da violência”, explicou Sergio Andréa, secretário-executivo de Assistência Social do governo do Rio de Janeiro.

Mãe solteira, sem apoio do pai de seu filho, que a abandonou antes do parto, Alessandra, como as demais mulheres de paz, não é catedrática em violência. Mas, a sofre em todas suas formas como moradora dos bairros marginalizados do Brasil.

As favelas as parte consubstancial das cidades brasileiras. No Rio de Janeiro, com 6.1 milhões de habitantes, calcula-se que 1,5 milhão vivem nas populosas favelas que em boa parte se espalham pelos morros.

Nesses assentamentos a violência mais evidente é derivada do narcotráfico e suas consequências: munição pesada entre bandos rivais, incursões policiais para combatê-la e abusos cometidos pelos dois lados do conflito.

“A toda hora há tiroteio, em horário escolar, quando alguém sai para trabalhar”, contou à IPS Alessandra, operadora de rádio em uma cooperativa de taxistas.

“Nesta guerra entre traficantes e policiais, infelizmente os moradores são os que sofrem as consequências e isso se reflete em nossa vida”, lamentou.

Impactos evidentes em seu filho de 6 anos que, quando começa o tiroteio, “treme todo”. Mas, muito mais sutis durante o crescimento, como uma agressão formadora de uma cultura violenta.

“A violência para eles se resume em uma agressão. A mente vem preparada para receber conteúdos que influem em sua vida, e crescem com a violência em suas cabeças”, disse Alessandra.

O projeto começou em comunidades do Rio de Janeiro com altos índices de violência e escolheu a mulher, porque “ela é cada vez mais central e importante na vida dessas comunidades”, disse Andréa.

Mulheres como mantenedoras do lar, como impulsoras de melhorias comunitárias, como “guardiãs” de seus filhos e dos idosos.

Na prática, sua função é detectar jovens em situação de risco e enviá-los a projetos governamentais de qualificação profissional.

Para isso recebem cursos de direitos humanos, técnicas de intermediação e noções de justiça, em troca de uma remuneração equivalente a US$ 80, por oito horas de dedicação semanais.

Mas sua missão é mais ambiciosa, explicou à IPS Rita Lima, coordenadora de qualificação profissional. Trata-se de criar “uma cultura de paz” para reduzir os índices de insegurança através da cidadania e não da repressão policial.

“A paz em um lugar violento somente é possível quando construída por seus próprios habitantes”, afirmou.

Ao contrário de outros, este projeto é executado “pelas mulheres que conhecem todos,que trocaram as fraldas dos que hoje são jovens, que recebem o vizinho que bate à porta com um problema”, contou Alessandra.

Daniela Rocha também conhece de perto esses jovens.

Pedreira e jogadora de futebol em seu tempo livre – esporte que muitas meninas da favela aprendem – os conhece dos jogos comunitários, onde não vacila em atirar-se na lama se necessário.
“Meu sonho é não ver nenhum deles se drogando ou roubando nas ruas”, contou, ainda transpirando após uma partida.
 
Outras violências
 
Como “embaixadoras de paz”, as mulheres também orientam as vítimas de violência machista.
“Nos contam que apanharam do marido e explicamos a elas que a lei sobre violência domestica as ampara”, disse à IPS Maria de Souza, avó aposentada e “mulher de paz”.

A violência domestica, sexual e verbal, segundo Alessandra, são comuns às mulheres de todo o mundo. Ela mesma sofreu agressões de seu ex-companheiro. “Mas, nós sofremos um preconceito adicional, sermos faveladas”, ressaltou.

A portuguesa Tatiana Moura, do Observatório sobre Gênero e Violência Armada do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, não vê a violência domestica como “um elemento decisivo” para entrar no trafico de drogas.

“São uma sucessão de violências – econômica, de gênero ou social – que podem influir no envolvimento de mulheres e de homens na violência armada”, disse à IPS desde Coimbra.

Em seu livro “Rostos invisíveis, a violência armada”, para o qual pesquisou por um ano e meio nas favelas do Rio de Janeiro, Tatiana aborda a questão da mulher como vítima e também com protagonista.

“A violência armada apareceu como uma forma de reação a outros tipos de violências acumuladas”, como abusos físicos e psicológicos, e de “violências estruturais e culturais”, resumiu.
 
Gênero e narcotráfico
 
Muitos estudos abordam a participação no tráfico de jovens como os atendidos pelo projeto de mulheres de paz. Mas, poucos aprofundam sobre a participação feminina.

Tatiana Moura ressaltou, precisamente, a maneira “separada” com que se pesquisa no Brasil a violência urbana e “as violências de gênero”.

“Com tendência, o campo feminista se ocupa da violência contra as mulheres especificamente da violência domestica, e dá pouca atenção a outras particularidades do universo da segurança pública”, disse.

Por seu lado, os investigadores e ativistas em segurança e criminalidade “marginalizam as questões de gênero”, acrescentou.

“Tudo ocorre com se o fenômeno da violência estivesse dividido em dois polos independentes: o espaço público, reservado aos homens – que são, de fato, os que mais matam e morrem por armas de fogo – e o mundo doméstico, considerado o lugar por excelência da vitimização feminina”, disse a especialista.

Tatiana foi mais além em seu estudo e estabeleceu, por exemplo, as motivações das meninas e mulheres no tráfico de drogas.

Elas são “noivas dos traficantes” e exercem outros papeis “de base”, como o transporte de armas e drogas, até outros de maior hierarquia, como o uso de armas de fogo.

A pesquisa concluiu que “nos papeis periféricos” do tráfico as motivações subjacentes das mulheres e dos homens são semelhantes: falta de expectativas, exclusão social e “perspectiva da violência armada como mecanismo para obtenção de bens de consumo”.

Mas, quando as mulheres assumem papeis “protagonistas” nas redes do trafico também têm outras razões.

“Muitas vezes têm filhos, são viúvas e buscam no tráfico uma fonte de sustento”, disse Tatiana. Mas, também, “a maternidade pode às vezes significar o abandono completo dessa vida criminosa”, acrescentou. Cisleia Bento Rosa, outra mulher de paz, dedicou-se ao tráfico para criar seus quatro filhos.

Agora, como orientadora de jovens da comunidade, Rosa transmite sua experiência.

“Conto a eles o que passei e que isso não é vida”, contou, mostrando uma cicatriz do passado: a de um tiro no pescoço que atravessou a omoplata e que a obriga a usar um dispositivo artificial para falar.

Rosa se preocupa especialmente com os casos de mulheres agredidas ou humilhadas pela polícia, que invade ilegalmente suas casas em busca de drogas ou suspeitos.

“Digo a elas como reagir quando os policiais enfiam o pé nas portas”, resumiu ao explicar a orientação legal que oferece.

Segundo Andréa, o sucesso do projeto se baseia nessa participação direta das mulheres em sua comunidade.

“Se diferencia de outros porque é um projeto de dentro para fora, no sentido de que suas responsabilidades são da comunidade”, explicou.

Silvia Ramos, coordenadora do universitário Centro de Estudos de Segurança e Cidadania, aprovou o projeto ser em grande escala, em várias comunidades metropolitanas.

Mas, questionou a escassa retribuição que entrega aos jovens, cerca de US$ 50 mensais. A bolsa – disse – não representa um estímulo para jovens que, afastados do tráfico, ficam “sem profissão, fora da escola e totalmente destreinados para o mercado de trabalho”. IPS/Envolverde


Crédito da imagem: Reato Diniz - Cortesía Programa Nacional de Segurança com Cidadania.


Crédito:Lui Affonso

Autor:Fabiana Frayssinet

Fonte:http://envolverde.ig.com.br