Rio de Janeiro, 18 de Maio de 2024

Tráfico de animais

O tráfico de animais silvestres é responsável pela morte e tortura de 12 milhões de animais brasileiros e põe em perigo florestas e outros ecossistemas

Tome-se como exemplo os papagaios. Eles são capturados na floresta e enfiados sem cerimônia em gaiolas escondidas embaixo das mercadorias que sacolejam nas caminhonetes. É o primeiro teste de resistência. Os sobreviventes são dopados, empurrados para dentro de tubos de PVC e novamente escondidos – agora no fundo de malas ou engradados contrabandeados para a Europa ou para os Estados Unidos de avião, no mesmo estilo do contrabando de cocaína. Se passarem nesse segundo teste, vão enfeitar alguma casa ou zoológico distante. A maioria não resiste. É assim que funciona um dos mais lucrativos comércios ilegais do mundo, que movimenta até 20 bilhões de dólares por ano.

Caçar animais é coisa que os índios já faziam antes do Descobrimento. O cuidado – ou o exagero – nessa atividade variava de uma tribo para outra. Mas com a chegada dos europeus, que logo iniciaram o tráfico (como se pode inferir do trecho da carta de Caminha), a captura de nossa fauna assumiu dimensões predatórias e seguiu, na mesma intensidade, a destruição da Mata Atlântica e, posteriormente, do Cerrado. Hoje, as estimativas do governo brasileiro são de que cerca de 12 milhões de animais, entre macacos, jaguatiricas, araras, papagaios, tartarugas, serpentes, borboletas e peixes tropicais, são capturados em florestas, cerrados e outros ambientes naturais do Brasil.

Depois de serem transportados sob péssimas condições, os animais capturados são contrabandeados para outros países. Assim como os escravos que morriam devido aos maus-tratos nos navios negreiros, uma grande parte desses animais morre no caminho por causa das condições em que são escondidos na carga de caminhões, navios e aviões. Outros são vendidos por aqui mesmo ou sistematicamente mortos – como as onças-pintadas e jacarés – para terem suas peles ou outras partes do corpo retiradas e vendidas. Outros ainda, como serpentes e aranhas, têm seus venenos extraídos para serem empregados na pesquisa ou fabricação de medicamentos. Estimativas feitas por organizações não-governamentais indicam que o Brasil contribui com 10% dos bilhões de dólares arrecadados com o tráfico internacional.

Primeiro caçador

A carta do escrivão Pero Vaz de Caminha para o rei d. Manuel é sugestiva no que se refere ao que viria daí para a frente em relação aos animais silvestres. Dá até nome ao primeiro caçador dos tais papagaios e cascavéis capturados no Brasil.

"Resgataram lá por cascavéis e outras coisinhas de pouco valor, que levavam, papagaios vermelhos, muito grandes e formosos, e dois verdes pequeninos, e carapuças de penas verdes (...) Vossa Alteza todas estas coisas verá, porque o Capitão vo-las há de mandar, segundo ele disse."
Pero Vaz de Caminha, Carta a El Rei D. Manuel, 1º de maio de 1500

Trata-se de Afonso Ribeiro, um condenado que viajava na expedição de Cabral para ser abandonado distante de Portugal.

Já no início do século 16, as coloridas aves capturadas na colônia faziam tanto sucesso entre os europeus que inspiraram até um dos seus nomes: Terra dos Papagaios. As aves viraram símbolo da novidade geográfica, invadiram as gaiolas e enfeitaram os mapas. Um dos mais antigos documentos com referências à terra brasileira, por exemplo, é o Planisfério de Cantino, de 1498 a 1502 (foto). Hoje na Biblioteca Estense, em Modena, na Itália, o mapa é ilustrado com belas araras de asas verdes e peito vermelho. Essas e outras aves estão também no mapa publicado por Martin Waldseemüller, 16 anos após o Descobrimento. Na Carta Marina Navigatoria Portugallen, em 1516, Waldseemüller registra a Terra dos Papagaios em um desenho da costa que Pero Vaz de Caminha chamara de Ilha de Vera Cruz e o rei de Portugal, d. Manuel, posteriormente nomeara de Terra de Santa Cruz.

A cultura de caçar animais silvestres cresceu e pode ser vista até mesmo na indumentária da Corte brasileira. Um exemplo disso é encontrado no manto que teria adornado d. Pedro 2º, guardado no Museu do Império, em Petrópolis, e coberto de penas de tucano.

Combate insuficiente

O combate ao tráfico de animais no Brasil é insuficiente – e quando ocorre, inócuo. A reportagem de GALILEU pôde constatar isso ao acompanhar uma blitz realizada por fiscais do Ibama e policiais da Delegacia do Meio Ambiente do Estado em uma casa de fundos na periferia de São Paulo. Os fiscais encontraram 78 pássaros engaiolados, dois jabutis numa caixa de madeira e, numa jaula de 15 centímetros, um apavorado mico. Eram vítimas do crime ambiental, escondidos num depósito clandestino, alugado pelo comerciante Almir de Melo, de 54 anos. Sete meses antes, ele já havia sido multado pelo mesmo motivo. Levado à delegacia pela segunda vez, pagou fiança de 200 reais, foi multado em 500 reais por espécime, perdeu o produto e mesmo sendo reincidente está sendo processado na Justiça em liberdade. A multa provavelmente jamais será recolhida aos cofres públicos, e deve prescrever em cinco anos. Esta é uma das brechas existentes no sistema legal, por meio das quais o tráfico continua.

Alvos de caçadores
Onça-pintada (Panthera onca), mico-leão-preto (Leontopithecus chrysopygus) e arara-azul-de-lear (Anadorhynchus leari)

Apesar disso, pode-se dizer que esta é a única ação efetiva para salvar os animais vendidos ilegalmente na periferia dos grandes centros urbanos em um esforço desenvolvido pelo governo e algumas ONGs. O mapa do crime, montado pela Renctas (Rede Nacional de Combate ao Tráfico de Animais Silvestres), mostra centenas de áreas de captura e feiras de animais espalhadas por todo o País. Os principais centros de comércio são Rio de Janeiro e São Paulo.

Dezenas de animais capturados pertencem a espécies que só vivem no Brasil e estão em risco de extinção – por isso mesmo são muito valorizadas pelos traficantes. O problema é que, além de praticarem um comércio com requintes de crueldade, eles também ameaçam o próprio ambiente. Assim como os animais dependem dos hábitats, estes precisam da fauna para manter a cadeia do ciclo de energia e de nutrientes.

Dopados e "enlatados"

Papagaios-sardinhas

Após receberem uma dose de tranqüilizante, papagaios-verdadeiros (Amazona aestiva) são colocados em tubos de PVC e escondidos em malas.

A cena acima é real e foi gravada pela Video & Cia. para o filme Campanha Nacional de Combate ao Tráfico de Animais Silvestres, da Renctas

Crédito:Luiz Affonso

Autor:Pablo Pereira

Fonte:Galileu