Rio de Janeiro, 25 de Abril de 2024

Lição de casa

Dar bronca, sermão e colocar de castigo todo dia são medidas que não ajudam seu filho a ser um aluno responsável.

 

Silmara Guimarães radicalizou: adotou um enorme relógio para apressar o filho Henrique nas tarefas.

Quando o ano letivo começa, o entusiasmo quase sempre é geral: professores descansados, pais empolgados e crianças cheias de novidades para contar. Uma alegria! Mas, para muitos pais, essa alegria dura pouco. Assim que a rotina escolar se estabelece, começa a mesma ladainha de todo ano: a lição de casa.

"Quem será que inventou essa história?", devem perguntar-se muitos pais que, ao final de um dia exaustivo de trabalho, ainda precisam verificar se o filho fez a lição, e se ela está certa e bem-feita. Isso quando não travam uma dura batalha com o filho tentando convencê-lo de que é mais importante fazer a lição de casa do que assistir televisão, jogar bola com os amigos, brincar com as amigas ou, simplesmente, ficar sem fazer nada.

Mas, afinal, para que serve a lição de casa? Por que é motivo de tanta confusão em muitos lares e provoca tantos conflitos entre pais e professores? Por que as crianças resistem tanto a assumir essa responsabilidade sozinhas? Criança que não gosta de fazer lição de casa está fadada ao chamado fracasso escolar? CRESCER saiu em busca de esclarecimento para essas questões, tão importantes para a família e a escola.

Quem inventou essa história
Pouca gente sabe que a lição de casa surgiu nos Estados Unidos, nos anos 30, como parte de um modelo de ensino destinado a atender estudantes da zona rural, já que eles não podiam freqüentar a escola todos os dias.

Mas, se o objetivo era o de compensar horas não passadas na escola, como ganhou tanta força e visibilidade em nosso sistema escolar?

No Brasil, essa atividade ganhou espaço como forma de manter a criança ocupada com exaustivos exercícios de repetição, quando a aprendizagem era bastante confundida com memorização. Mas o conceito de aprendizagem mudou bastante desde então. "Consideramos a aprendizagem um processo de construção individual de conceitos e idéias, no qual a maneira de pensar do aluno, seu conhecimento prévio sobre as coisas e suas hipóteses a respeito dos diferentes assuntos são fundamentais", diz a psicóloga Maria Helena Bresser, diretora pedagógica do Colégio Móbile, de São Paulo.

Se mudou o conceito de aprendizagem, o de lição de casa deveria ter mudado também. E mudou: hoje, nem todos os especialistas em educação concordam que seja uma atividade necessária ou importante para o aluno. Muitos questionam sua eficácia. "Na perspectiva de um ensino mais moderno, não é necessário haver lição de casa, já que isso significa delegar aos pais uma atividade pedagógica para a qual eles não tiveram preparo e que é responsabilidade do professor", diz Júlio de Aquino, professor da Faculdade de Educação da USP, resumindo uma postura defendida por muitos educadores. E isso vale também para os pais que são professores!

Mas a lição de casa não teria um papel importante no reforço do aprendizado de determinados conteúdos? "A escola tem mil maneiras de transmitir conteúdo no tempo em que fica com a criança em classe. Não precisa do trabalho de casa para complementar a aprendizagem", responde a psicóloga Heloísa Szymanski, professora do curso de pós-graduação em psicologia da educação, da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, PUC-SP.

Há quem discorde dessa posição. Muitos educadores acreditam que a lição de casa tem, sim, função pedagógica importante. "É uma forma de desenvolver na criança o hábito do estudo e ensiná-la, progressivamente, a construir uma relação de autonomia e responsabilidade em relação à aquisição de conhecimento", explica a psicopedagoga Neide Noffs, professora da Faculdade de Educação da PUC-SP. Em outras palavras, para eles, a lição de casa coloca a criança diante do desafio de realizar sozinha uma tarefa – oportunidade que não tem em sala de aula, onde a maioria das atividades são desenvolvidas coletivamente.

Bilhetinho que repassa

A saudação que inicia o bilhetinho geralmente introduz um relato do tipo "seu filho conversou durante a aula inteira", "fez bagunça na hora de formar a fila" ou "não fez a lição de casa". Criados com a intenção de manter os pais informados sobre a realidade da escola, os bilhetinhos viraram uma espécie de instrumento de denúncia. "Funcionam como uma forma de denunciar e pedir providências, exigindo que os pais resolvam questões com as quais os professores não estão conseguindo lidar", observa a psicopedagoga Neide Noffs.

"É o mesmo que a mãe mandar o filho para o colégio com um bilhete do tipo "Senhora professora, meu filho não arruma a cama direito. Por favor, tome providências!" ", diz Ângela Fontana, coordenadora da Escola Vera Cruz, de São Paulo. Os bilhetinhos abaixo exemplificam bem a situação. São todos de um mesmo garoto, cujo nome foi apagado a pedido da mãe. A ela, um deles solicita: "Por favor, retome com ele as páginas 88 a 93 do livro de matemática".

"Quando recebo esses comunicados, sempre cobro muito de meu filho e, quando o bilhete trata de algo mais grave, o pai também participa das conversas", diz a mãe. "Mas, quando acho que é responsabilidade da escola, vou falar com a professora."

Em busca da autonomia
Sozinha? Não é o que, em geral, acontece. Na verdade, os pais são envolvidos nessa questão logo na primeira reunião que a escola promove no ano. Nela, os professores apresentam a programação, explicam as formas de avaliação e, quase sempre, a discussão esquenta quando chega o item lição de casa. Aí é aquela polêmica: muitos pais acham que os filhos trazem trabalho demais para casa, enquanto outros reclamam que é pouco, e pedem mais.

Mas quando a criança chega em casa com a famosa tarefa é que começam os problemas. De um lado, tem criança que não se lembra que deve fazer a lição, ou não consegue dar conta do recado sozinha e se zanga porque os pais não conseguem, ou não podem, ajudá-la. Do outro lado, há pais que não têm tempo e, muitas vezes, nem sabem como auxiliar o filho. "Aqui em casa é sempre motivo de briga", conta a dona-de-casa Vanda Elizeu da Silva, mãe de Karen, 12 anos, e de Felipe, 5. "Acho que meu marido tem de participar quando a menina pede ajuda, mas ele se nega, alegando que está cansado do trabalho."

Ainda que não termine em briga, o dever quase sempre é fonte de tensão. "É uma loucura!", desabafa a agente comercial Marilene Rodrigues de Souza. Ela trabalha em dois empregos e monitora pelo celular os filhos Marcos Vinícius, 9 anos, e Gabriella, 7. "A escola deles sempre dá muita lição", reclama. Para ajudar os filhos, Marilene não poupa esforços. Mantém em casa um estoque de revistas antigas para auxiliar Gabriella e fez cadastro na biblioteca do bairro, onde passa na hora do almoço para retirar livros. No trabalho, faz pesquisas na internet para Marcos. Quando os filhos chegam da escola, ela liga para saber das tarefas que trouxeram. "Dou instruções sobre o que eles podem adiantar e quando chego, lá pelas 10 da noite, auxilio nos exercícios mais difíceis", conta Marilene.

Apesar de não trabalhar fora, a dona-de-casa Ana Maria Monteiro também corta um dobrado para orientar a filha Ana Carolina, 9 anos. "A primeira coisa que faço é verificar na mochila o que tem para fazer", diz. O passo seguinte é instalar a garota na mesa da cozinha, sob suas vistas, com cadernos e livros. Assim ela vai socorrendo a filha enquanto providencia o jantar. "Se eu deixar para o dia seguinte, sei que ela acaba não fazendo", justifica.

"Mal colocado, o dever de casa pode gerar um clima de cobrança que interfere no relacionamento familiar", afirma Stela Piconez, professora da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo, USP. Ela não tem toda a razão?

Depois de ler esses relatos, dá para entender a posição dos educadores que discordam da existência da lição de casa, não é verdade? Mas muitos alunos são beneficiados com essa atividade. Para que isso seja possível, a escola deve estabelecer um bom relacionamento com os pais. E uma providência fundamental para que isso aconteça é pais e professores acertarem os ponteiros em relação à lição de casa desde o começo do ano letivo. "Esse assunto precisa ser combinado entre as duas partes, passando a integrar-se ao projeto pedagógico da escola", aponta Maria Cecília Gasparian, presidente da Associação Brasileira de Psicopedagogia.

Ele nunca faz. E agora?

Seu filho enrola, diz que não sabe, esconde os cadernos, fala que a professora não passou nada... a lista de motivos é interminável. O resultado é um só: ele não faz o dever de casa. Que providências tomar? Primeiro, verifique se ele está usando um espaço adequado e dispõe de todo o material necessário. Depois, observe se não o está sobrecarregando com atividades extras, como esportes e aulas de idiomas. Se você providenciou todas as condições necessárias e ele continua resistindo, leve o problema ao professor. "A escola tem que resolver, e uma das alternativas é abrir um espaço dentro do horário de aula para que o aluno faça a lição", observa Ângela Fontana, coordenadora pedagógica da Escola Vera Cruz, de São Paulo.

Crédito:Luiz Affonso

Autor:Iracy Paulina

Fonte:Crescer