Rio de Janeiro, 17 de Maio de 2024

A onda do selinho

A onda do selinho
As amigas Raphaela Vieira, de 20 anos, e Aline Moraes, de 23, têm um artifício para afugentar marmanjos inconvenientes em discotecas e bares: o selinho. Ex-aluna da Escola Parque, Thalia Aguiar, de 19 anos, cansou de ver as colegas de turma usarem este recurso para “tirar onda” com meninos caretas. O mesmo faz sua irmã, Tainá, com amigos do Centro Educacional Anísio Teixeira (Ceat). Conhecido como estalinho, bitoca ou chiclete, na gíria adolescente, o beijo rápido na boca está na moda entre jovens, dos que transitam em eventos da moda aos estudantes universitários. E virou tema de livro para o jornalista Pedro Paulo Carneiro. A pesquisa de Pedro registrou 483 tipos de beijo, entre eles 16 variações de selinhos.

As amigas Letícia Pantoja, de 20 anos, e Helena Machado, de 21, trocam estalinhos desde que se conheceram no curso de teatro da Casa de Artes de Laranjeiras (CAL). Letícia diz que a prática tornou-se banal entre estudantes. Para ela, o hábito de beijar amigos e amigas começou aos 13 anos, de brincadeira.

— Faço teatro desde então e o cumprimento com selinho sempre foi natural. Os meus professores dizem que o artista é quem questiona as regras e gosta de causar estranheza. Talvez a origem do selinho entre os jovens esteja aí.

Para Tania Zagury, autora de livros sobre comportamento jovem, o selinho não é um gesto de desafio: tudo não passa de modismo, que ganhou visibilidade nos reality shows , “Casa dos Artistas” e “Big Brother” e em programas de auditório como o de Hebe Camargo.

— Os jovens imitam artistas de TV — diz Tania.

Raphaela Vieira, de 20 anos, e Aline Moraes, de 23, não vêem o estalinho como provocação. Mas concordam que o hábito serve para afastar os rapazes que elas não querem por perto.

— O engraçado é a reação dos homens. Há os que desistem de se aproximar, pensando que somos lésbicas, e os que resolvem atacar justamente porque alimentam fantasias com lésbicas — diverte-se Aline.

A psicóloga Dulce Silveira não vê o estalinho como prática homossexual:

— O estalinho não é comum entre meninos porque eles têm mais dificuldade de expressar afeto. Quanto às conotações do beijo, elas variam de acordo com o contexto. Se o jovem tiver sido criado num ambiente familiar repressor, por exemplo, pode haver a intenção de chocar com o beijo.

Já a psicanalista Eliana Helsinger condena selinhos entre pais e filhos:

-— A boca é uma zona erógena e os pais não devem sexualizar a relação com os filhos. Este comportamento com crianças pode, no futuro, influenciar a escolha de parceiros sexuais. Por outro lado, os pais não devem mostrar preocupação ou tentar proibir selinho entre jovens. Isto passa.

Quanto à reação masculina, Eliana é categórica:

_ Os inibidos, com fantasia de ver intimidades entre mulheres, se sentem ameaçados.
Beijo na boca pode ter intenção de chocar pais e provocar os rapazes

Graças ao selinho, a dona de casa Claudia Farias conseguiu estreitar seus laços familiares. Assim que o marido, Pedro Paulo, foi transferido para a filial de sua empresa em Manaus, há dez anos, Claudia e os filhos, Maria Clara, de 17 anos, e Pedro, de 15 anos, se viram num ambiente estranho e resolveram se isolar. A aproximação familiar aumentou com a intimidade do selinho.

— Sempre dei selinhos nos meus filhos. No entanto, à medida que eles foram crescendo e fazendo amizades em Manaus, passaram a evitar o meu beijinho. Começaram a demonstrar afeto só com os amigos — conta Claudia.

Segundo a psicóloga Dulce Silveira, os jovens buscam contato físico com pessoas próximas através de gestos íntimos como o beijo. No entanto, também é comum o afastamento dos jovens dos pais.

— Nem todo adolescente dá selinho, mas, quando o faz, é entre os amigos. O comportamento é típico desta idade. O filho deixa de beijar pais e irmãos quando chega à adolescência porque muitas vezes vê no gesto uma atitude infantil, que denota um apego à família. Como a tônica nesta idade é a busca por identidade e a afirmação de independência, eles se tornam refratários ao contato físico com os pais, privilegiando o grupo social de sua faixa etária.

Para a psicanalista Maise Resnick, o jovem só evita o contato íntimo com o próximo quando tem medo de não controlar as suas emoções.

— O jovem é mais sensível às emoções na adolescência e não sabe como reagir a elas. O afastamento dos pais é a defesa natural dessas situações de estranheza — esclarece.

Para Maise, o selinho deve ser visto como manifestação de afeto e não tem conotação homossexual.

— O estalinho não passa de um gesto de afeto mais íntimo. Não deve ser visto como comportamento exclusivo de homossexuais ou namorados. Cada cultura, no entanto, enxerga o beijo de forma diferente. Há 25 anos, eu já trocava estalinhos com as amigas íntimas de faculdade e o meu pai, que é judeu, também beijava toda a família desta forma.

Coordenadora e orientadora do Centro Educacional da Lagoa (CEL), Márcia Justino vê o selinho como prática cultural.

— O estalinho pode até ser natural entre jovens, mas só é comum entre irmãos, primos e pais. O beijo na boca como demonstração de afeto não é hábito entre latinos, ainda seja freqüente em países árabes, por exemplo — diz Márcia.

A educadora Tania Zagury também trata do estalinho como uma questão cultural.

— Este beijo é uma manifestação de afeto, um gesto de intimidade que não tem grandes desdobramentos.

As irmãs Juliana, de 13 anos, e Renata Valles, de 15, desde pequenas se saúdam desta forma em casa. No entanto, não aceitaram posar para as fotos da reportagem, com medo da reação dos colegas.

— Apesar de nos beijarem em casa e de trocarem estalinhos entre si, elas dizem que é “pagação de mico”, ou seja, têm medo de ser motivo de chacota entre os coleguinhas — diz a mãe, Daise Macedo.

Formas do afeto

ENTRE PAI E FILHO: De acordo com os especialistas, é a modalidade menos comum de estalinho porque os homens têm uma dificuldade maior de expressar carinho.

ENTRE PAI E FILHA: Expressão de afeto comum, costuma se limitar a gestos rápidos e esporádicos. Na maior parte das vezes, a iniciativa é abandonada na idade adulta.

ENTRE AMIGOS: Psicólogos e terapeutas dizem que os pais não devem dar tanta atenção a estas manifestações de afeto comuns na adolescência. Segundo eles, o estalinho é uma característica de grupos de jovens que agem desta forma numa tentativa de demonstrar o seu carinho sem conotação sexual, por meio de contato físico.

MÃE E FILHO: Comum até o início da adolescência, o hábito é deixado de lado pelos meninos a partir de uma determinada idade. Para os psicólogos, os jovens evitam o contato com os pais por não saberem ainda controlar as suas emoções.

MÃE E FILHA: Manifestação de carinho esporádica e comum até a idade adulta. É grande o número de adolescentes que não gostam de tornar público o hábito por temerem a reação de seus colegas.

NA IDADE ADULTA: Pode ter conotações de transgressão dependendo do contexto em que se desenvolve. Para os psicólogos, não se trata de um gesto de liberação do comportamento afetivo, mas sim uma necessidade de se contrapor a geração passadas.



Crédito:Fátima Nazareth

Autor:Elisa Torres

Fonte:O Globo