Rio de Janeiro, 17 de Maio de 2024

O poder da "carteirada" ainda impera em nosso país

O poder da
 
Desembargador pune guarda que cumpriu a lei
 
 
Ao fazer cumprir a lei, uma guarda municipal acabou recebendo ontem uma punição inusitada: foi parar na delegacia e autuada depois de multar o carro do filho de um desembargador e mais sete veículos estacionados em local proibido. O desembargador Eduardo Mayr, da 7 Câmara Criminal, alegou desacato a autoridade e abuso de poder para fazer o registro de ocorrência na polícia.

Era perto das 10h quando a guarda Rosimeri Dionísio começou a multar os oito veículos estacionados irregularmente na Rua Lacerda Coutinho, em Copacabana. Entre eles, o Golf verde pertencente ao filho do desembargador, que mora na rua. Também parado próximo a uma placa de proibido estacionar, o carro oficial de Eduardo Mayr, com placa do Tribunal de Justiça, escapou por pouco de ser receber a multa: seu motorista saiu às pressas do local ao avistar a guarda Rosimeri de bloco na mão. Mas o Golf do filho de Mayr teve a placa LNB-0985 anotada. Embora ele seja estudante de direito, seu carro mostrava um adesivo do Poder Judiciário.

 
Em frente à casa, reserva de vaga não autorizada

Na pequena rua, a maioria dos imóveis não tem garagem. É o caso da residência do desembargador, onde, exatamente em frente, e a poucos metros de duas placas de estacionamento proibido, uma pintura no asfalto avisa: “estacionamento de viatura oficial”. A CET-Rio informou, no entanto, que a sinalização não foi autorizada. À noite, carros da família do desembargador voltaram a desafiar a lei e estacionar em frente à sua casa, protegidos por marcadores de vagas feitos de madeira e cimento.

De acordo com Rosimeri, ao sair de casa para trabalhar e vê-la multando o carro de seu filho e os outros veículos, Mayr pediu-lhe que retirasse as multas, alegando que a rua era residencial e os automóveis, todos pertencentes aos moradores. Como ela se negou a retirar as multas, mesmo depois de ele se identificar como desembargador, Mayr resolveu chamar a Polícia Militar, que levou a guarda para a 12 DP (Copacabana). Antes, ele exigiu que ela lhe entregasse o talonário com todas as multas aplicadas — um documento público — e se recusou a devolvê-lo até mesmo ao delegado.

Mayr se defendeu alegando que a guarda Rosimeri agiu com deboche e ironia.

— Eu quis ponderar que a rua é pequena, estritamente residencial. Tentei explicar tudo isso, mas ela me tratou com um desrespeito capaz de provocar revolta em qualquer cidadão. Diante disso, resolvi usar de minha autoridade para denunciá-la à Polícia Civil — explicou Mayr, que na delegacia não quis devolver os talões de multa dizendo que a Guarda Municipal deveria procurar os meios legais de obtê-los de volta.

 
Especialista: Mayr deveria ter sido preso em flagrante

Para o advogado Luiz Paulo Viveiros de Castro, especialista em direito administrativo, o desembargador cometeu apropriação indébita (dos talonários), abuso de poder e desacato à autoridade.

— Ele deveria ter sido preso em flagrante. Naquela situação, o doutor Mayr estava fora de suas funções e por isso não era autoridade. Era um cidadão como qualquer outro e devia obediência às leis. Mas infelizmente, esse é o vício do “sabe com quem está falando?” — comentou Viveiros.

O major Márcio Medeiros, coordenador de tráfego da Guarda Municipal, disse que vai enviar um ofício ao Tribunal de Justiça pedindo que o desembargador devolva os talões de multas.

O delegado Fábio Corsino autuou a guarda, instaurou inquérito e disse que encaminhará os depoimentos ao 6 Juizado Especial Criminal, que determinará se houve desacato ou abuso de poder. No Juizado, o desembargador e a guarda podem entrar em acordo sem que seja necessária uma sentença.

 
Guarda está disposta a processar desembargador

Apesar disso, Rosimeri está disposta a processar Mayr.

— Eu estava exercendo a minha função. Estava ali como profissional — disse ela.

Ao comentar o incidente, o vice-presidente do TJ, desembargador José Lucas Alves de Brito, afirmou que nenhum juiz goza de privilégio nas leis de trânsito:

— Fiquei surpreso com o envolvimento do desembargador Mayr no episódio. Ele é um homem cuja personalidade é marcada pela educação e pela serenidade.

O prefeito Cesar Maia quer parabenizar pessoalmente a guarda Rosimeri. Para isso, vai convidá-la para um almoço, no qual ele prestará solidariedade à guarda. Segundo Cesar, ela cumpriu seu dever e impôs a lei.

O desembargador Eduardo Mayr é um dos juízes criminais mais conhecidos do Rio. Recentemente ele negou hábeas-corpus ao cantor Belo, preso preventivamente pela acusação de associação para o tráfico de drogas. Também determinou a prisão dos quatro policiais acusados de terem matado o seqüestrador Sandro do Nascimento, do ônibus 174, há dois anos. Em 1999, foi um dos juízes que determinaram a condenação do jogador Edmundo à prisão por um acidente na Lagoa.

 
Evangélico, Mayr já é juiz há 30 anos

Mayr é juiz desde 1972. Casado, é pai de cinco filhos. Muito religioso, freqüenta a Igreja Presbiteriana de Copacabana e é conselheiro da Associação de Magistrados Evangélicos.

A guarda Rosimeri, que exerce funções no trânsito há sete anos, disse nunca ter passado por uma situação parecida. Afirmou que é comum receber reclamações de motoristas que se sentiram lesados pela aplicação de multas, mas que nunca teve de ir a uma delegacia para resolver uma situação semelhante.

Crédito:Fatima Nazareth

Autor:Ana Wambier

Fonte:O Globo