Rio de Janeiro, 17 de Maio de 2024

Os imigrantes e o Brasil

Os imigrantes e o Brasil
Muitos portugueses respiraram aliviados quando terminou a minissérie O Quinto dos Infernos. Já o telespectador brasileiro, contrariando a imagem idílica do "homem cordial", divertiu-se muito com o achincalhe da família real. Puro ressentimento pelos três séculos de dominação colonial, observaram representantes da comunidade lusitana. Vingança de mestiços sem chances de viver numa democracia racial, concluíram sociólogos. Afinal, imigrantes italianos aparecem às dezenas nas novelas e ninguém ri deles. É justo o português ser reduzido ao estereótipo de obtuso, enquanto o italiano posa de herói romântico e construtor do Brasil? Por que a novela Esperança parece um requintado filme de Visconti e O Quinto dos Infernos esbarrou na pornochanchada? Há uma resposta corriqueira para a lusofobia: a maioria dos imigrantes portugueses veio de províncias atrasadas. Incultos e pobres, eles inspiraram piadas ofensivas que levam a atriz e produtora de teatro Ruth Escobar, há 50 anos morando no Brasil, queixar-se até hoje da maneira como são tratados pelos ficcionistas brasileiros. Faz coro ao protesto sua patrícia Maria Adelaide Amaral, que assinou a adaptação televisiva de A Muralha e Os Maias.

Esse tratamento deverá mudar com a atuação dos portugueses em Esperança e a estréia, em setembro, da próxima novela das 6 da Globo, Sabor da Paixão, gravada em Portugal. Na primeira, o português que vai aparecer nos capítulos programados para os dias 12 e 13 chama-se José Manoel e não usa tamancos nem bigodão. É um estudante ferido na batalha das tropas paulistas contra a milícia de Getúlio Vargas em 1932. O autor da novela, Benedito Ruy Barbosa, sente-se à vontade para falar tanto do universitário lusitano como do italiano Toni, principal personagem de Esperança. "A mesa brasileira, afinal, combina bacalhau e macarronada", compara o dramaturgo, que tem sangue das duas culturas nas veias. "Se tivesse de definir o traço fundamental da cultura italiana, diria que é a passionalidade, enquanto o da portuguesa é a severidade, o que explica em parte a diferença de tratamento."

Carlos Ivan/Ag. O Globo
MACARRÃO E BACALHAU As novelas Nino, o Italianinho(à esq.) e Antônio Maria foram pioneiras no tratamento da imigração pela TV

Ruth Escobar lembra a propósito da figura do pai, português, com o cinto na mão, signo do autoritário colonizador que brandiu a chibata e provocou ressentimento por onde passou. O deboche seria, então, uma espécie de vingança da ex-colônia contra as condições de vida dos escravos e dos trabalhadores brasileiros, que, posteriormente, viriam a ser maltratados por imigrantes. Claro que os portugueses sofreram e ainda sofrem com essa ironia. "Eu buscava o isolamento, me escondia da comunidade portuguesa com vergonha de ser confundida com patrícios ignorantes", conta a empresária.


Fotos: Gianne Carvalho/TV Globo
NOVA IMAGEM O italiano Toni (Reynaldo Gianecchini, acima) ganha um concorrente ao posto de herói romântico na figura do português José Manoel (Nuno Lopes, à esq.), um estudante revolucionário em Esperança, que está na novela para mostrar que o imigrante lusitano também era engajado

Com o mundo mergulhado no desemprego e na crise econômica, cresce o risco de se repetir aqui a síndrome xenófoba dos países ricos, onde os estrangeiros passam a ser considerados "extracomunitários", eufemismo inventado pela União Européia para ä identificar imigrantes indesejáveis. Enxovalhar o "outro", rebaixá-lo para afirmar a identidade étnica sempre foram táticas usadas na luta pela sobrevivência. É só lembrar que portugueses e italianos competiam pelo mesmo emprego no Brasil dos anos 30, período da Grande Depressão enfocado na novela Esperança. Os primeiros representavam, então, um quinto dos moradores do Rio de Janeiro e metade da população empregada, o que explicaria o antilusitanismo, segundo historiadores. Os rivais mantinham uma relação tensa e inventaram piadas que traduzem a competição entre as duas comunidades – com desvantagem considerável para os herdeiros de Cabral.

O imigrante italiano era igualmente pobre, como o Toni de Esperança, mas preservou estreitos vínculos com a cultura que tinha deixado para trás e da qual sempre foi orgulhoso. O português veio de aldeias atrasadas, de uma cultura essencialmente agrária. Ficou com a imagem do "cutruco", baseada no binômio avareza e ignorância, de acordo com uma pesquisa realizada há dois anos. Por outro lado, há toda uma história ainda não contada sobre a militância política dos líderes operários portugueses entre a proclamação da República e 1920. Os ficcionistas, de modo geral, elegem o imigrante italiano como trabalhador consciente e politizado, reservando injustamente ao português o papel de trapaceiro ou alienado. Exemplo antigo dessa redução é o Antônio Maria da telenovela de mesmo nome escrita e dirigida por Geraldo Vietri em 1969. Pioneira no tratamento do tema imigração, Antônio Maria agradou à colônia portuguesa ao apresentar um milionário que se fazia passar por chofer. Incentivado pelo sucesso da novela, o mesmo Vietri repetiu a dose em Meu Rico Português, não sem antes homenagear os "rivais" em Nino, o Italianinho, em 1970. Em todas elas os estrangeiros foram estereotipados. O panorama só mudou com a estréia da novela Os Imigrantes, em 1982, em que três Antônios – um português, um italiano e um espanhol – desembarcavam no Brasil para enriquecer. O espanhol sofria mais que os outros para subir na pirâmide social.

Já a espanhola Carlota Joaquina veio do topo e teve de descer quando chegou ao cinema e à televisão. Devoradora de homens, a infanta foi ridicularizada no filme que leva seu nome, dirigido por Carla Camurati. Mais recentemente, a "rainha louca" virou megera edipiana na minissérie O Quinto dos Infernos, que mostrou as taras de outros integrantes da família real portuguesa. Dom João VI abriu os portos, mas fechou os olhos para o desvario sexual de dom Pedro I e a paixão homossexual e incestuosa do irmão, que provocaram protestos da comunidade portuguesa. Mas foram poucos, segundo o diretor da Central Globo de Comunicação, Luís Erlanger. "Desde o início ficou claro que era uma paródia, e quem a viu verificou que o tratamento caricatural não se restringia aos portugueses, mas igualmente a franceses e brasileiros." Rui Rasquilho, diretor do Instituto Camões, foi um dos primeiros opositores à minissérie. Perguntou, na semana de seu lançamento, se "os brasileiros não se envergonhavam de fazer uma coisa dessas". O autor Carlos Lombardi respondeu: "Sou descendente de portugueses, minha mãe é italiana com cara de turca e fui até muito doce com a família real, deixando de lado um farto material de pesquisa sobre ela". O problema é que os arquivos históricos também possuem "farto material" para mostrar uma visão inversa, que desenha um dom João VI muito mais astuto que estúpido e um dom Pedro I bem mais sintonizado com os dilemas de seu tempo do que o seriado permite imaginar.

Carlos Ivan/Ag. O Globo

RISOS Carlos Lombardi, autor de O Quinto dos Infernos, só quis divertir

Em todas as novelas que escreveu, de Vereda Tropical a Perigosas Peruas, Lombardi usou imigrantes sem intenção de ofender. Só que, no caso de O Quinto dos Infernos, não tomou a precaução da diretora Carla Camurati em Carlota Joaquina, que atribuiu a um narrador escocês a tarefa de contar a história no filme. Eximindo-se da culpa de mostrar dom João VIcomo bufão devorador de coxinhas de galinha e uma Carlota bigoduda e assanhada, a cineasta filtrou a realidade pelo olhar estrangeiro. Inverteu a tese do sociólogo Gilberto Freyre. O colonizado vinga-se da repressão brutal do colonizador, mas incorpora um sentimento paternalista ao falar de seus defeitos, como no samba-enredo do crioulo doido. Afinal, a principal característica do Carnaval é promover uma representação grotesca da realeza desfilando de pandeiro na mão diante do estático e balofo Rei Momo. Inverte-se a hierarquia para tudo ficar na mesma.

A carnavalização é malvista pelos portugueses, garante a dramaturga Maria Adelaide Amaral, elogiada em sua terra natal pela adaptação de Os Maias. "Sou obrigada a concordar que existe certo ressentimento do colonizado, que ainda vê o imigrante português como energúmeno, mas não gosta de ser identificado lá fora com prostitutas e travestis." De fato, a pesquisa do professor Tunico Amancio, da Universidade Federal Fluminense, para escrever sua tese O Brasil dos Gringos, revela que o estereótipo do brasileiro como lascivo confere. Ele analisou mais de 200 filmes estrangeiros sobre o país. Concluiu que "nos tratam como gente fogosa, vagabundos carnavalescos que adoram macumba e vivem de trapaças". Numa pesquisa realizada com portugueses por ocasião dos 500 anos do descobrimento os brasileiros foram vistos como preguiçosos, mentirosos e abusados. Principal virtude? A alegria, seguida da cordialidade. Será?



 

Crédito:Fatima Nazareth

Autor:Antonio Gonçalves Filho

Fonte:Época