Atualmente a mídia tem aumentado o uso da imagem da mulher associada a bebidas alcoolicas, no entanto, leis estão sendo implementadas para que se proíba a veiculação e a associação da mulher, e mais precisamente do seu corpo, com o consumo de cerveja.
Vivemos em um mundo visual, em uma sociedade de imagens, em uma cultura da mídia.
Portanto é relevante para quem vive imerso em uma sociedade da mídia e consumo, aprender a conviver neste ambiente midiático, aprendendo como entender, interpretar e criticar os seus significados e imagens, resistindo a sua manipulação.
As representações são leituras e interpretações sobre a realidade. Elas referem-se à dimensão da relação (comportamentos, práticas sociais, discursos) dos sujeitos com a cultura e seu universo simbólico, e dos sujeitos entre si, elaborados a partir de uma determinada posição no espaço social.
Elas são formadas e reiteradas quando os sujeitos encontram-se para falar, argumentar e discutir no cotidiano. Porém, não podemos correr o risco de reduzir a realidade à concepção do que os sujeitos fazem dela.
A representação de um grupo social, nada mais é do que uma, entre tantas representações sobre a realidade.
As propagandas de cerveja utilizam representações sobre as mulheres que circulam na sociedade. Essas representações são estabelecidas como realidade através das instituições como a mídia, o Estado, a Escola, dentre outras.
À proporção que associam comportamentos, valores, atitudes a um ou a outro gênero, as representações midiáticas ajudam, a formular o que reconhecemos como feminilidade e masculinidade, estando imbuídas, portanto as relações de poder entre os gêneros.
Desde modo, entender o porquê da popularidade e repetição de certas fórmulas utilizadas nas propagandas pode elucidar o meio social em que elas nascem e circulam levando a perceber quais representações estão sendo construídas na sociedade sobre as mulheres.
Neste trabalho, utilizei as dimensões de gênero desenvolvidas por Scott (1989) para a análise das práticas discursivas produzidas pela mídia. Para ela, o gênero é elemento constitutivo das relações sociais fundada sobre as diferenças percebidas, e implicam em quatro aspectos:
1) símbolos culturalmente disponíveis que evocam representações simbólicas;
2) conceitos normativos que põem em evidência as interpretações do sentido dos símbolos expressos nas doutrinas religiosas, educativas, políticas e cientificas;
3) instituições e organização social;
4) a identidade subjetiva.
Dentro dessas quatro dimensões que se intercruzam, analiso a dimensão institucional - a mídia - que reitera através dos seus discursos as desigualdades de gênero; a dimensão normativa, no qual essas instituições normatizam o simbólico a partir das representações inseridas nos comerciais; e por fim, a dimensão simbólica inserida nos discursos dos comerciais.
Acredito que a mídia, é uma instituição que normatiza o simbólico, ao construir nos comerciais, representações sobre as mulheres utilizando os seus corpos.
Penso que as práticas discursivas produzidas pela mídia, são formas simbólicas, que veiculam noções existentes na sociedade, reproduzindo crenças, valores e identidades sociais, retratando alterações históricas, e contribuindo para a perpetuação ou transformação das relações sociais.
Parto do pressuposto de que os contextos sociais são constitutivos da produção das formas simbólicas, e dos modos pelos quais essas formas são recebidas e entendidas, contribuindo também para as maneiras pelo qual elas serão interpretadas, recebidas e valorizadas.
Dentro dessa perspectiva, as propagandas que analiso são formas simbólicas produzidas pela mídia. Nessas propagandas existem representações que são construídas e transmitidas que legitimam a ideologia dominante.
Desde modo, alguns grupos sociais têm os seus símbolos e significados representados em detrimento de outros grupos.
É válido ressaltar que a legislação que regula o sistema brasileiro de difusão dos meios de comunicação está desatualizada e ao mesmo tempo, constata-se a ausência de um código de conduta.
O Conselho Nacional de Auto-Regulamentação Publicitária - CONAR, organização não governamental (ONG) criada há quase duas décadas, encarregada de regular às propagandas, tem sido ausente nos diálogos e denúncias sobre a imagem da mulher na publicidade.
O movimento feminista, junto com alguns setores da sociedade vem fazendo um trabalho de conscientização e crítica da forma como a imagem da mulher vem sendo abordada na mídia. Diversos estudos estão sendo publicados com o intuito de evidenciar essa problemática. (FUCK, BISOL, SABAT, 2005).
Leis estão sendo implementadas para que se proíba a veiculação e a associação da mulher, e mais precisamente do seu corpo, com o consumo de cerveja. Por exemplo, o projeto de lei da Deputada Iara Bernardi (PT-SP), proibindo a veiculação de propagandas que utilizem imagens sensuais ou pornográficas em qualquer meio de comunicação do País.
Para Sergio Valente, diretor de criação da DM9DDB essa proibição é um acinte a democracia: “Não vou mostrar pessoas esfaqueando às outras, porque isso é um exemplo ruim... não se deve criar uma ‘patrulha’ ideológica sobre os criativos.
Mas também não acho que vincular mulher bonita a cerveja seja algo machista, isso é brasileiro... O único papel da propaganda é o resultado em vendas. Não acredito em campanhas caretas que dêem resultados à empresa.” (apud MADUREIRA, Daniele. O papel social da propaganda. www.abap.com.br, 22-04-2002).
Percebo que a mídia por estar presente no cotidiano das pessoas, contribui de maneira eficaz para a formação do senso comum.
Os publicitários evocam nos comerciais, a partir das diferenças, os variados “sensos comuns” inseridos no cotidiano, para criar intimidade com o consumidor, universalizando a diversidade dos sujeitos.
O discurso publicitário para representar homens e mulheres, utiliza padrões de categorização, classificação, hierarquização e ordenação da realidade e das relações entre as pessoas, capazes de significar os contextos desejados de forma a torná-los compreensivos e consumíveis.
Dessa maneira, as propagandas vendem estilos de vida, sentimentos, visões de mundo, fazendo com que, mesmo que não compremos os seus produtos, estamos consumindo e reproduzindo os seus discursos.
O discurso é uma prática social atribuída de significados e que só tomam forma e se constroem em relação a um contexto sociocultural e histórico, que envolve relações de poder e ideologia.
A partir da abordagem de gênero podemos discutir a construção do masculino e do feminino, e principalmente das relações que se efetuam entre homens e mulheres dentro da nossa sociedade.
Como toda ação, os discursos são maneiras dos agentes sociais atuarem no mundo e, igualmente sobre os outros, além de serem uma forma de representação, ou seja, uma significação da realidade, instituindo e construindo a realidade através de significados.
Em um movimento relacional dialético os discursos são marcados pelas estruturas sociais e, as estruturas sociais produzem os discursos.
A análise Critica do Discurso parte do estudo da transmissão e na legitimação de ideologias sexistas e/ou racistas, valores e doutrinas que colaboram para a naturalização de discursos particulares como sendo universais, a respeito daquilo que é “normal” ou “essencial” no momento de definir um grupo social.
Essa ideologia construída nos discursos é geralmente a do branco, masculino, ocidental, de classe média ou superior, e estão imbuídas posições que vêem raças, classes, grupos e sexos diferentes dos seus como secundários, inferiores e subservientes.
Irei refletir sobre a propaganda da cerveja Kaiser, que faz parte do repertório das propagandas que estudo na minha dissertação. Sua produção foi realizada em agosto de 2007, pela produtora S2 Comunicação Integrada e tem duração de 30 segundos.
A gravação ocorreu no presente mês (outubro) no horário de 20 horas na emissora Bandeirantes, e foi transmitida no intervalo do telejornal da emissora. A propaganda se passa em uma fábrica de cerveja, em um ambiente industrial. As cores utilizadas no cenário são as mesmas do rótulo da cerveja: o metálico, o branco e o vermelho. Ela começa com a abertura das portas da fábrica da Kaiser.
O homem que aparece no comercial é o garoto propaganda, “o baixinho da Kaiser”, um senhor barrigudo e de bigode. Ele entra na fábrica com a cerveja na mão, acompanhado de duas mulheres, loiras, cabelos compridos, altas, trajando vestido branco curto e decotado, com detalhes vermelhos (cinto, óculos, prancheta, lápis).
A propaganda trabalha com a confecção e o controle de qualidade da cerveja, para mostrar para o telespectador o porquê que a Kaiser é gostosa. As imagens estão relacionadas à beleza, a sensualidade e ao erótico feminino. Em toda a propaganda as modelos que trabalham na fábrica trajam roupas decotadas e insinuantes, nas cores vermelhas ou brancas.
Elas têm a pele clara, cabelos castanhos, pretos ou loiros, sendo predominante a presença de loiras. Elas aparecem com roupas sensuais, olhos sedutores e bocas entreabertas. Em uma das cenas, elas estão vestidas com tops, shorts e botas vermelhas, cabelos soltos, segurando barras de ferro, que se assemelham as barras das dançarinas de boates.
Em uma das cenas finais, as mulheres estão dentro de um tubo de vidro transparente (ou garrafa - que se assemelha a um objeto fálico) segurando a garrafa da cerveja de forma sensual. A cena volta para “o baixinho da Kaiser” que aperta o botão e uma das modelos some e aparece no frezzer do bar.
A imagem dá ênfase ao seu decote, seu rosto tem um olhar sedutor e sua boca está entreaberta. Antes de entregar ao garçom, ela sopra a cerveja para ficar mais gelada, dando a garrafa em seguida.
O garçom pega a cerveja e fala “Isso sim é que tecnologia, heim?”. Aparece rapidamente a cena do bar e o comercial é finalizado. A propaganda incita a sensualidade, sexualizando e generizando a cerveja, atribuindo a ela valores socialmente reconhecidos como femininos.
A voz da locutora; a música de streptease; os sussurros e gemidos reforçam a sensualidade e a erotização do comercial.
Observo que o discurso midiático da propaganda em questão trabalha com concepções essencializantes que apresentam a feminilidade e a masculinidade baseadas em atributos inatos, naturalizados, delineando uma relação coerente entre sexo, gênero e desejo.
Elas acabam por afirmar modelos tradicionais, criando imagens estereotipadas dos agentes sociais. As narrativas e as imagens veiculadas pela mídia fornecem símbolos, os mitos e os recursos que ajudam a constituir uma cultura comum para a maioria dos indivíduos.
De acordo com Sabat (1999) a propaganda, junto com o seu universo de imagens, é também um meio de “regulação social” que reproduz padrões mais comumente aceitos pela sociedade.
Eles são assimilados e aceitos pela pessoa como sua própria representação, e assim se torna real para ela, embora seja de fato imaginária. Existe uma naturalização de fenômenos, ou seja, tomá-los como algo que “já existe e sempre existiu”, alegando que não podem ser refletidas nem modificadas.
Esse processo que Thompson (1995) denomina de reificação é uma estratégia para a permanência de determinadas normas, valores e posturas como elementos contemporâneos, justamente por serem consideradas pertencentes a uma tradição “eterna” e, por esta razão, aceita e justificável, onde uma situação transitória é representada como permanente ocultando seu caráter sócio-histórico.
Os publicitários criam a propaganda para atingir o senso comum, desse modo, existe um significado do discurso dominante socialmente atribuído à mulher. A cerveja por ela mesma não cria no imaginário social um poder de venda, é necessário ela está associada a outros valores (atribuídos nesse caso à mulher) para se tornar um objeto de desejo e consumo.
Aparecendo ao lado de objetos de consumo, os corpos femininos prometem um paraíso erótico, em suma, são, para nós, os representantes genéricos do que é desejável.
Para Bourdieu (1998), “Os atos de conhecimento e reconhecimento práticos da fronteira mágica entre dominantes e dominados, que a magia do poder simbólico desencadeia, e pelos quais os dominados contribuem, muitas vezes à sua revelia, ou até contra a sua vontade, para a sua própria dominação, aceitando tacitamente os limites impostos...” (1999, p.51).
Desse modo, as práticas discursivas dominantes veiculadas nas propagandas de cerveja contribuem para que a dominação masculina perpetue, fortalecendo a discriminação das mulheres no âmbito público e principalmente no privado.
Acredito que os agentes sociais sofrem ao mesmo tempo a ação das relações e agem sobre elas, podendo construir e modificar individualmente e/ou coletivamente, suas vidas, por meios das práticas sociais. A mulher (e por extensão o seu corpo - assim fragmentados) está presente nas propagandas para ser “consumida” assim como a cerveja.
É necessário um discurso político eficaz sobre os usos do corpo feminino pela mídia, pois, ao fragmentar a mulher, dando evidencia somente a algumas partes do seu corpo, ela não se constitui enquanto sujeito. O corpo está sendo utilizado de forma “avulsa”, não sendo analisado as conseqüências políticas que esse uso pode trazer.
Utilizo a abordagem externada por Foucault e Bourdieu que o corpo “é um lugar prático direto de controle social”.
O que percebo nesta análise é que a exposição do corpo feminino como está sendo utilizada na mídia tende a perpetuar a tão discutida e problemática dominação masculina.
Sendo, portanto uma violência simbólica de gênero, pois, ela acaba por legitimar e reiterar através das práticas discursivas as representações e os valores dominantes perpetuando as desigualdades de gênero.
A ação feminista consiste, portanto em avaliar criticamente os discursos construtores de uma teia de significados, de uma visão de mundo socialmente construída que historicamente tem excluído e estigmatizado as mulheres. Nas propagandas a mulher e o produto se fundem através de qualidades comuns, ela própria é delineada como um objeto de consumo.
É desta forma que se expressa a violência simbólica de gênero. Sabemos que toda relação social e toda prática é um locus de reprodução tanto quanto um locus de mudança.
A mídia incorpora elementos da realidade, mas também pode modular, redimensionar, e recriar essa mesma realidade. Desta forma as propagandas adquirem relevância política tanto na construção como na desconstrução das representações sobre nós mulheres.
Crédito:Luiz Affonso
Autor:Thaís Conde
Fonte:Universo da Mulher