Rio de Janeiro, 18 de Abril de 2024

Acho que já comentei que sou uma publicitária ...

Acho que já comentei que sou uma publicitária ...
Acho que já comentei que sou uma publicitária ... dedicada, estressada, frustrada por não trabalhar numa grande agência.
 
Uma agência renomada, com grandes contas, grandes prêmios, grandes festas, pessoas com pensamentos grandes, homens grandes...ops, vamos parar de delirar!
 
A única coisa que bateu na minha porta foi uma agência de publicidade pequena, bem pequena não, média podemos dizer assim.
 
 
Trabalho na "Matuta Produções e Criações" há cinco anos.
 
CInco anos me dedicando dia e noite a aguentar as reclamações do meu chefe, as encheções de saco do meu chefe, a chatice dos clientes, as reclamações do meu chefe, a chatice dos clientes e assim vai sucessivamente.
 
 
No começo foi legal.
 
 
Entrei na Matuta assim que saí da faculdade.
 
Não queria ser mais uma com diploma na mão e sem emprego na outra. Aceitei uma das primeiras propostas que me apareceram.
 
A grana no começo era legal.
 
Também para quem ganhava pouco mais de um salário mínino como atendente de lanchonete, qualquer merréis é lucro.
 
Um ano, dois anos, três anos... cinco anos já se passaram e eu continuo na Matuta. Não sou mais uma profissional feliz. Não me sinto mais realizada.
 
Todos os dias, quando o despertador toca, a minha vontade é deixar ele tocando e fingir que não estou ouvindo Dormir até meio-dia e fazer tudo aquilo que eu sempre quis fazer, mas a Matuta nunca deixou.
 
- Pede logo as contas, mulher.
- Ai, Betina, pra você que tem dinheiro, é fácil né? Esqueceu que eu moro sozinha e tenho minhas contas para pagar.
 
- Eu sei...mas se você está infeliz! E outra você é uma profissional competente e pode arrumar algo melhor.
 
 
Profissional competente é o que todos falam, mas até agora não lucrei com toda essa minha competência.
 
O salário continua menor do que as minhas dívidas, trabalho mais do que o necessário, estou esquecendo quase tudo que aprendi poque não apliquei até agora (sou obrigada a seguir os padrões da publicidade de 1950).
 
O mundo tá evoluindo e eu me sinto indo contra toda essa evolução.
 
 
 
**********
 
"Vai ser hoje. Hoje eu peço as contas. Vou chegar e dizer ´olha, muito obrigada, mas não dá mais não". É o que eu penso todos os dias em dizer, quando estou à caminho da agência.
 
Chego lá sempre desejando que aquele seja meu último dia, mas nunca é. Será que esse dia vai chegar?
 
Sei que num país de desempregados não posso me dar ao luxo de querer jogar a minha única fonte de sustento para o alto, mas não aguento mais. Um dia, minhas preces serão ouvidas...
 
 
 
*******
 
- Bom dia, Diana!
- Nossa, Rose, que cara é essa?
- Te prepara, garota. O clima aqui é dos piores hoje.
- Posso saber por quê?
- Simplesmente porque perdemos a conta da SHZ.
- Da SHZ? Mas eles são os únicos clientes decentes e mais ricos que a gente tem...
- Pois é...
 
 
O dia seguiu até às seis da tarde com clima de velório e enterro ao mesmo tempo. A porta da chefia ficou fechada o dia todo. Meu querido chefe não saiu nenhuma hora para dizer algo. Como já era esperado, no fim do expediente, Seu Jorge reuniu a trupe:
- Gente, nem sei como começar a dizer isso...
 
 
Vou resumir: ele fez aquele discurso típico de que éramos uma ótima equipe, bons profissionais, que ele gostava muito da gente, mas que a empresa ia ter que passar por uma reestruturação e conter gastos. Preciso dizer que o meu salário e o meu emprego foi um dos gastos que ele cortou?!
 
 
Saí de lá com o meu sonho realizada: era mais uma desempregada no meio de milhões. Cheguei em casa meio pasma, meio feliz e meio triste. Agora eu era dona do meu próprio nariz. Não precisaria mais acordar cedo, aguentar encheções de saco de patrão e de cliente. Ia poder nadar, ir ao cinema numa tarde ensolarada, fazer tudo e nada numa segunda-feira...
 
 
Mas parecia que as contas coladas na geladeira gritavam: "Ô, sua pateta, e a gente? Como vamos ficar?". É, realmente, como eu ia ficar e como eu ia fazer pra pagar todas as contas que gritavam da minha geladeira. Eu até ia tirar uma grana do seguro desemprego e da rescisão,mas um dia a grana ia acabar. E esse dia estava muito próximo.
 
 
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- O que eu faço?
- Ué, você não queria sair da agência.
- Queria...queria sair e não que me tirasse de lá. E agora? Como vou fazer? Vou ter que voltar pra casa dos meus pais. E eu jurei que não voltaria, que podia provar que seria independente, dona do meu próprio nariz...e agora só sou dona do meu prejuízo..
- Calma, Di, tudo vai se ajeitar. Guarda uma grana pra sobreviver esses meses e corre atrás de outro...
- Como se fosse fácil né? Fila, entrevista, processo seletivo...tudo de novo, não! Acho que vou me engajar para conseguir um homem rico...é isso...um homem rico é a solução para os problemas das mulheres solteiras desempregadas do Brasil.
- Ô anjinho, desce daí de cima. O máximo que você vai conseguir frequentar é o boteco da esquina e se contente de o dono do bar te der uma piscada...acorda!
- Ai, credo...
 
 
A Betina estava certa. Eu tinha que parar de sonhar e cair na real. Me arrependi por ter desejado um dia sair da Matuta. Agora estava aqui: sem emprego, com pouco dinheiro e cheia de dívidas para pagar e que não paravam de gritar de todos os cantos do meu apartamento.
 
 

Crédito:Letícia Vidica

Autor:Letícia Vidica

Fonte:Universo da Mulher